domingo, 1 de dezembro de 2019

Ouvi dizer









Ouvi dizer que neste mundo
as mulheres têm penas mas não voam
e as vitórias esmagam-lhes o peito.
Ouvi dizer que o vento só lhes é favorável
quando gritam e contam tudo às árvores
e atravessam o vazio à boleia de uma lua cheia.
Ouvi dizer que moram na História
mesmo que as tentem apagar
construir muralhas ou mergulhá-las em sangue
ou mesmo enterrá-las num chão negro.
Mesmo que ganhem espinhos, elas florescem
e todas as flores despertam nas feridas abertas.
Ouvi dizer que só a arquitectura dos seus corpos
sustenta o universo e desenha o horizonte
em linhas perfeitas e caligrafias nostálgicas.
Ouvi dizer que é graças a elas, que se dá nome às coisas
e se inventam palavras capazes de vencer a morte.



© Margarida Piloto Garcia- in "COLECTÂNEA TOCA A ESCREVER 10 ANOS"-publicado por IN-FINITA EDITORA 2020



© Imagem de Gary Isaacs

sábado, 16 de novembro de 2019

Poente outonal







Há um céu fulvo a comer a saudade
e os passos resistem a queimar-nos a dor.
Sobram palavras onde o sol expira
num lânguido suspiro no horizonte.
Enleio-me na serenidade das gaivotas
e no gozo do grito das pequenas vagas.

Não há olhares na sombra do caminho
e os murmúrios são incógnitos e tristes.

Na calma amarga e aparente
resta-me o som vago e distante
da que já foi a tua voz.

© Margarida Piloto Garcia 
in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A CAMILO PESSANHA- publicado por Temas Originais 2017


À poesia








É o teu som que oiço na brisa matinal

despertando epopeias na pele dos meus sentidos

Arrulha o pássaro no reverso de mim

a instigar palavras para quebrar e dançar em teclas.

Agora a fonética corre lasciva da mente aos dedos

metamorfoses por trás da retina, versos saciados

a beberem as células do pensamento em fusão.

A imaginação atropela-me o corpo em sons

que se fundem num impensável ou predestinado

poema, prosa , acto de amor eterno.

Mordo as palavras com os sons que despertam

mesmo que seja noite, ou o inverno se mascare de verão.

Os espasmos dos risos ou dos beijos

são versos gritados a escorraçar silêncios

que vagueiam durante o dia, espessos como nevoeiro.

No fim amo-os nos sons que crescem dentro de mim

No fim amo-te a ti, poesia.






© Margarida Piloto Garcia.


sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Ser






Ser água
e permitir que escorra
entre beijos desfeitos.
Ser vento
e perder a inocência
nas raízes desse cabelo.
Ser terra
e sentir-me inteira
como um pecado original.
Na dúvida ser tudo isso
como um desejo insano e prepotente.
Conjugar verbos no sabor da pele
e gritar necessidades, doces, salgadas,
por vezes amargas e rebeldes.
Ser mar e ser falésia
deixar-me navegar até que tu naufragues
e as gotas de sangue me apaziguem os sentidos.
Ser a memória apagada
a predadora do cansaço e da crueldade mal gasta.
Ser um anjo feroz a abocanhar a vida
numa seminua pequenez.
Ser a mudez da cama vazia.
Fosforescer no verão ou noutra estação qualquer
quando só me falta a tua
num vai e vem de anos ululantes.
Ser o alento enganoso
quando o tempo não tem vagar de existir.
Ser um velho tango marginal
um ritual intimo enroscado num poema.
Ser o aroma da flor acabada de colher
e o grito da manhã.
Ser, enfim, a esperança de sobreviver
a mais um recomeço.



© Margarida Piloto Garcia-in "PALAVRAS DE CRISTAL VOLUME VI"-publicado por MODOCROMIA EDITORA-2020


© Foto de Randall Hobbet - Tetyana

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Desistência





O que não compreendes
é que a lâmina desliza devagar.
Tu não entendes.
Ninguém o faz.
Mas a lâmina é isso mesmo
um corte suave e eficaz
um deslizar carmim
o esquecimento
a paz.

Podes lá chegar
dum modo ou outro.
De joelhos com um beijo inesperado
no silêncio de uma vida minada
ou a decifrar algoritmos de perigo.
Tudo pode ser mais fluido
com comprimidos brancos enredados
em líquido ambarino.

Mas a lâmina corta cerce a cauda de sereia
e desfaz o sonho em fiapos.
Afinal, o vermelho vai casar bem
com o amarelo das giestas.

© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A JORGE DE SENA- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2019

© Foto de Pilar Les



quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Sexto sentido





A vida é um bicho estranho. Tem múltiplas pernas com que se movimenta num ritmo ora acelerado, ora lento. Tem asas com que às vezes voa e esmaga as ausências, e pele que dói no grito quente das memórias. As mãos inventam a vida ao sabor da imaginação e guardam na língua as palavras com que a tecem.
Desde pequena que a avó lhe dizia que ela tinha um dom. Ao longo da vida fora-se apercebendo das suas qualidades, bem como dos seus defeitos. Uns e outros eram o seu centro, a pedra nua onde se perdiam os passos do passado e se escondiam as linhas do futuro. Mas o tal dom nunca o sentira. Não adivinhava vidas, nem sequer vislumbrava essências do que já fora. O seu sexto sentido, a existir, devia-lhe ter falado ao ouvido no dia em que o conheceu. Quem sabe, não a devia mesmo ter esbofeteado acordando-a para a realidade.
Não fora uma paixão à primeira vista. Ela apenas se sentia amputada de um amor sonhado, de algo que a imaginação pedia e o corpo lhe gritava. Ele pintara-lhe a vida de cores garridas, de cativantes atenções e abrira-lhe as portas de um mundo novo. No desassossego dos sentidos incendiavam-se quimeras e nesse tempo não cuidava em perceber se o ombro dele seria porto de abrigo. Vestiu na perfeição uma cegueira engalanada e partiu em direcção a um destino torto.
As traições que lhe bateram à porta foram apenas os preliminares de uma destruição. As únicas coisas em que pensava eram um poderoso aríete a martelar-lhe a mente. Não quebrar. Não desistir. Não recuar. Tentar derrotar as humilhações, as ameaças, as palavras cruéis. Sobreviver, talvez por fora, enquanto por dentro tudo enregela e morre.
E dentro de si as palavras da avó: tens um sexto sentido!
Que sexto sentido? Aquele que a fazia tentar vezes sem conta burilar os factos para que a vida fosse normal, ou o que a dotava de discursos suicidas quando falava com ele?
A vida provara-lhe quão medíocre era a sua previsão de resultados. Cada conquista amainava-lhe os anseios e a esperança crescia-lhe nos olhos. Mas quanto demorava a decepção a engolir-lhe a vida e a persegui-la como um cheiro impiedoso? Muito pouco, por vezes míseros minutos até se sentir de novo exaurida numa solidão só dela, subjugada ao desprezo dele.
E os anos passaram sem que se conseguisse libertar, submetida ao bem dos outros, num arrastar sem sentido. Enquanto sentiu, lutou. Mas chegou a uma altura onde até a imprecisão da dor se tornou um hábito. A vida deixou de pulsar ainda que o coração dissesse que batia.
Naquele dia acordou com a estranha sensação de que algo aconteceria. Seria o tal sexto sentido de que a avó lhe falara? Se sim, não entendia porque esperara que ela tivesse cabelos brancos e o sorriso só lhe assomasse a cara aos trambolhões de tão pouco usado.
Levantou-se e traçou as linhas do costume. Começou a percorrer a estrada de mais um dia sem surpresas, nem alegrias. A sensação com que acordara era cada vez mais forte ao ponto de se tornar numa insidiosa dor de cabeça. Se não fosse a rotina e ela escrava de uma condição que a vida determinara, ou a sua cobardia lhe exigira, e teria saído para mergulhar o olhar nalgum ponto azul do rio.
Mas ficou presa nas teias da casa a arrastar a irrespirável solidão.
E foi nessa altura que o irreparável aconteceu. Tudo aquilo que ele um dia ameaçara estava agora a cumprir-se.
Só nos últimos segundos de vida se apercebeu que afinal a avó não mentira.



© Margarida Piloto Garcia in "SEXTO SENTIDO"  - publicado por LUA DE MARFIM EDITORA-2016

domingo, 6 de outubro de 2019

Teimosia








Pegar a vida pelos cornos
demonizá-la, violentá-la,
apertá-la com a dose certa de fúria
num abraço extremo, num último extertor.
Dançá-la num tango, dobrá-la pelos rins
aos meus desejos mais febris.
Esquecer. Esquecer mesmo que os dentes da memória
se cravem diariamente na pele.
Começar de novo
sem que a espinha se parta e os ossos dobrem.
Escapar aos titereiros, aos pagadores de promessas,
aguentar entre o pensar e o sentir.
Desafiar a sina, embrulhar palavras salgadas
em beijos doces, sem escolhas demoníacas.
Rejeitar a crueldade a rastejar nas veias
e atirar ao vento a gargalhada louca.
Viver, viver porque a solidão é uma arma
e a vontade uma réstia de sobrevivência.
No fim de tudo abrir as asas com intrepidez
e rugir a um novo amanhecer.



© Margarida Piloto Garcia  in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A JORGE DE SENA- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2019


© Foto de Nannimensch



segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Garrote








Não me escrevas.
Peço-te que não me escrevas.
Proíbo-te mesmo de me escreveres.
Afinal, a verdade nunca é a verdade.
Há inúmeras versões com o mesmo destino
irrepetível e abandonado, como coisa usada.

Não me escrevas.
A memória do corpo é coisa antiga
que tu acordas nas palavras. E quando a pele
se lembra, anseia pelo lume e tu não ardes.
As hienas chegam e riem das palavras
enquanto devoram a saudade.

Não me escrevas.
Não me lembres o momento em que o amor morreu
ou mesmo a chacina que a vida fez por aí.
Faço um esforço para aceitar as vozes que rasgam
pulsos e cravam facas no peito e insone
esmago sonhos nos vidros das janelas.

Posso aceitar o abismo
a penumbra dos lugares e até mesmo
a inutilidade da vida.

Mas por favor, não me escrevas.




© Margarida Piloto Garcia in "IDEÁRIOS" publicado por A CHAMA 2019



© Arte fotográfica de Marysia Bieniaszewska





domingo, 1 de setembro de 2019

Cegueira








Chove.
Chove há muito, mesmo que faça sol.
Chove desde o dia em que deixei de ver as nuvens
penduradas na janela a fingir horizonte.
Encurralada entre sombras, não meço distâncias
nem descubro gestos.
Onde a noite se deita, mascaro o amor de pedra
polindo as arestas mas cobrindo as feridas com sal.
As manhãs são sempre negras ou é a minha cegueira
que insiste em esconder o sol.

Chove.
Chove sempre que te relembro, mesmo que tenha
feito sol, mesmo que a primavera despontasse em mim.
É fundamental que as grilhetas não entrem no sangue
e as feridas não infetem com as memórias.
O que importa é que a ausência seja o tempo do nada

o tempo da cegueira.





© Margarida Piloto Garcia  in "IDEÁRIOS" publicado por A CHAMA 2019



© Foto de Georges Dambier

terça-feira, 20 de agosto de 2019

NA NOITE-Parte V- Aceitação






Finalmente arrumei as gavetas.
Deitei fora as cartas. Eram fórmulas mágicas
a prenderem-me à terra e estigmas
com que passava as noites. Ficou muito espaço
para arrumar o coração. Agora também posso
pendurar as lágrimas no armário, ou melhor ainda,
levá-las com o cão à rua e deixá-las a adornar as flores.
Já têm pouco sal, não devem fazer mal.
Cuidar do amor exige mestria. Os pedaços colam
de modo informe e desacertado e deixam arestas.
Assumi a reforma, não quero cuidar de nada.
Deitei todos os despojos no lixo, varri o teu fantasma
e o tempo em que era pássaro de gaiola.
Dentro de mim não há mais mágoas trituradas
e os sonhos vêm sem que o nevoeiro me penetre os ossos.
Já não tropeço cega e rastejante a perseguir sombras.
Enquanto te amei, estive sempre só. Hoje entrei
pelo espelho e fiquei completa, cara a cara com o meu eu.
Cumprimentei-me com o suspiro de quem se reencontra
e lembrei-me da canção que antes ouvia.

E vem-nos à memória uma frase batida
Este é o primeiro dia do resto da tua vida”



© Margarida Piloto Garcia in-"RONDA DA NOITE"- publicado  por TEMAS ORIGINAIS- 2019

© Foto de Josefina Melo




sexta-feira, 16 de agosto de 2019

NA NOITE-Parte III e IV- Negociação, depressão









Estive a tentar compreender.
Enchi um copo com água e reguei as plantas.
Quando a tarde chegou tinha as janelas abertas
e as palavras saíam em fila, penduradas nas nuvens
ou nos bicos dos pássaros.
Mas não quero pensar se o passado é uma nódoa
ou se o destino me amarrou como um cancro terminal.
Assim sendo, esta vida não dá em poema
nem mesmo numa prosa linha a linha, poro a poro.
Se eu quisesse relembrar-te hoje, tinha de desaguar em mim o rio onde me lavaste o corpo e invadir as minhas reticências encharcadas de sentir.
Sem ti existe um deserto por onde passam tuaregues anónimos.
Tu sabias-me de cor mas sempre procurei ser em ti o que a imaginação mandava.
Não sei de olhos que me façam mais falta do que os teus. Profundos, mesmerizantes, a debitarem palavras com que o meu corpo se afogava num estremecimento primitivo.
Não sei de mãos que deseje mais, do que essas tuas, poderosas e invasivas , atiçando lume em cada toque.
As cartas de amor foram tatuadas na pele tão profundamente, que de cada vez que te recordo, me mordem e parasitam.
Se o amor se pudesse cristalizar não seria amor. Faz parte dele estas mudanças tão necessárias como as estações do ano.
Ontem eu não sabia de ti.
Hoje não sei mais de mim.




© Margarida Piloto Garcia in-"RONDA DA NOITE"- publicado  por TEMAS ORIGINAIS- 2019

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

NA NOITE-ParteII- Raiva




Raiva
Farpas afiadas a deixar esquírolas
Raiva
Rasgões violentos cuspidos da pele
Raiva
Um corpo em desvario a partir cortinas ocultas
opacas de tanto serem rasgadas e refeitas.
Negro, breu e sem vestígios de um raio de sol.
Negro, encardido com a mágoa
que os loucos não reconhecem.
Vontade de voar e cair livremente do espaço
a abraçar as árvores, a ser absorvida pelo mar,
a mergulhar na relva e nas azedas amarelas.
Pele a arder e púrpura nos olhos
chispas a chicotear paredes
e a sair lá para fora num bando de asas rutilantes.
Raiva
Negro, vermelho, cinza com laivos, laranja ardente
Raiva, raiva, raiva
e um coração a rebentar violência
e a esquecer doçuras.





© Margarida Piloto Garcia in-"RONDA DA NOITE"- publicado  por TEMAS ORIGINAIS 2019




segunda-feira, 12 de agosto de 2019

NA NOITE-Parte I- Negação





Já pensei bem e não sinto a tua falta.
Juro mesmo que esta sensação na cara
é apenas o orvalho da manhã
quando te fui esperar ao jardim
sem me lembrar da tua ausência.

Repito inúmeras vezes que não sinto a tua falta.
As repetições são apenas diálogos que faço comigo
enquanto vou limpando os teus passos
ao longo do corredor onde me abraçavas.
Deixei as fotografias onde estavas
não para te relembrar mas porque ficam bem
nos móveis do quarto onde não fazes falta.

Amanhã vou passear junto ao rio.
Se calhar bebo um café e falo com as gaivotas.
A camisola que deixaste ainda fala de ti mas não faz mal
não sinto a tua falta. A vida é mesmo assim.




© Margarida Piloto Garcia in-"RONDA DA NOITE"- publicado  por TEMAS ORIGINAIS- 2019




© Pintura de Heléne Bélande


domingo, 7 de julho de 2019

Canção do mar





Lençol de areia quente e branca
a emborcar desejos sob o sol.
Nele me envolvo com a alma gasta 
e a pele a arder. Um dia destes
rompo os braços mar fora.
Quem sabe a espuma sabe a algodão doce
e me faz adormecer devagarinho.

Passo a passo deixo rudes marcas
fantasmas deste corpo a afogar-se
em esperanças devolutas, presas pela raiz.
Abro o peito à maresia para expurgar
os vícios. Afasto os versos turvos
e mergulho a alma sem remédio.

As palavras soam estéreis
sem que ninguém lhes valha, tal como cada adeus.
Indiferentes, as gaivotas despedem-se de mim
e eu não sei de gritos para as chamar.

Na impoluta madrugada
canção perfeita é a do mar.

© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A SOPHIA DE MELLO BREYNER- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2019

© Pintura de David Ligare



segunda-feira, 1 de julho de 2019

Fórmula






O segredo é não chegar perto
não deixar o ar encher-se de perfumes nocturnos
trazidos pelo vento suão.
Impedir o peito de arfar
e sorver a vida em golfadas sôfregas
sem que te pique a língua e arranhe a garganta.

O segredo é não deixar
a pele arrepiar. Cerrar os dentes
mesmo que todos os ossos te doam
e a febre te consuma.

Mesmo assim…
nem todos os santos e crenças me salvarão.
Nem todos os médicos e mezinhas
surtirão efeito, se um dia te deixar
chegar perto.




© Margarida Piloto Garcia in OPUS-2-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2019



 
© Imagem Eliza Mytk


quarta-feira, 26 de junho de 2019

Faca mortal






Faca mortal
esse teu nome que me perfura 
rompe e sussurra neste naufrágio.

Faca mortal
esta lembrança de mãos acesas
que me rebentam em cegarregas
sem fim à vista.

Faca mortal
estes sentidos não saciados
num faz de conta todo inventado
trocando o medo pelo vazio.

Visto este corpo, só com o teu
que se intromete e manipula.
Rubro o punhal que me embriaga
e eu intrépida abraço a lâmina
que se retorce dentro de mim.

Vem à lembrança o sol na pele
veias pulsando, bocas gritando
e eu amarrada no teu olhar.

Faca mortal
este desgosto.




© Margarida Piloto Garcia in OPUS-1-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2018

domingo, 23 de junho de 2019

Entre a noite e o dia







Basta acordar cedo e fugir aos dialetos noturnos.
O medo esconde-se nas sombras
e nos silêncios. É uma serpente a devorar a luz.
O dia vive temerário e brilha como sílica ao sol.
Nele, os poemas são menos fatais e as clausuras
são menos verdadeiras e insensatas.

Não há leis nem teoremas que te ajudem
quando morres atropelada pelos sonhos.
Em qualquer estação do ano, a vida
é uma promessa imperfeita, uma construção
a desmoronar-se desde o passado.

Há uma morte repetida em cada dia
um revolver apontado à cabeça,
um apelo que guardamos por dentro
a tornar-se peso, a tornar-se sombra,
a respirar fundo feito veneno.





© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A SOPHIA DE MELLO BREYNER- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2019

Mulher







O que os olhos das mulheres dizem
tem o suspiro das feridas ligeiramente encobertas
com o nevoeiro das promessas.
O que os seus braços abraçam
são as opções de todas as batalhas femininas.
A suas bocas não falam só de amor
gritam enquanto se batem nesta selva.
Lá fora as crianças carregam sorrisos em bombas por explodir
e as mães lavam o sangue na areia onde as vergaram.
O medo não tem direito a beijos, nem a lágrimas apressadas
por isso as mulheres guardam-nos em cada ruga, em cada poro.
Sabem tudo mas engasgam as palavras porque o vento as devolve
por vezes em látegos de dor.
Amam na raiva e na meiguice. Estão no lado errado da lua
mas a luz explode nelas.
Intrometem-se, polinizam, abandonam-se e embriagam-se de amor.
Fecham as asas da crença mas intrépidas soltam-nas em alto voo.
Para falar de amor, as mulheres ajoelham-se como quem reza
porque dentro delas há sempre sonhos por cumprir.



© Margarida Piloto Garcia 
in- "OPUS-2"-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2019


© Foto de Christian Coigny

segunda-feira, 17 de junho de 2019

O que resta







Do amor já nem resta o quarto vazio
o sol do outono e o vento do verão.

Foram-se as paredes cúmplices
e os beijos vorazes como papoilas.
As feridas abertas são exorcizadas
em equilíbrios acrobáticos.
Temos lâminas e espadas nas mãos
e um revólver na boca aberta
a encher de balas o que nos rodeia.
Fez-se noite tão depressa
as paredes encheram-se de bolor e
os quartos são habitados por outros amantes.

Já não sei se inventei afectos
ou se o medo cresceu no final
mas os pássaros ainda se deitam nesta praia
e a chuva ainda chora por nós.



© Margarida Piloto Garcia 
 in "OPUS-1"-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2018


© Foto de Rova


Vida e morte







O que a impede de morrer é aquela lua
no vapor vago e delirante da maré cheia.
O que a prende é a linha salgada
e o silêncio puro do corpo despido.
Impávida, cerca-se de suicídios teóricos
envoltos em fantasmas do passado.

Por causa dele está presa à raiz
à viagem sem retorno
às cumplicidades amarguradas.

O que a impede de viver
é a esperança ébria e imperfeita
que a massacra e lhe morde a vida.




© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A CAMILO PESSANHA- publicado por Temas Originais 2017


segunda-feira, 10 de junho de 2019

Pássaro





Pássaro azul, a tua boca
mora ao lado da minha e sobrevoa-me.
Cristalina, canta-me madrugadas
e beija-me com o cheiro do pão quente.
A luz da manhã pisa as flores moribundas
fere o silêncio e dá nome aos nossos corpos.

Pássaro vermelho, as tuas mãos
são tardes de um fulgor incandescente
silhuetas desassossegadas no corpo em fúria.




© Margarida Piloto Garcia  in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A CAMILO PESSANHA- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2017