sábado, 13 de abril de 2024

Moderato


 

Moderato


A felicidade devia ser assim

como um riso de criança que nunca se esvai

tão vasto como um horizonte

reinventando a vida sempre que se acorda .

O sal na pele, a febre do mar, areia a escorrer

em castelos de sonho, azedas para trincar,

veredas para as batalhas de cavaleiros,

letras a mostrarem a voracidade do mundo

e a ignorância de se ser feliz.



Céus que se fantasiam de cores

melodias, passos de dança, cabelos brilhantes,

jogos de faz de conta que não se repetirão.

Tudo parece lento mas é apenas mais um engano

dos tantos que desconheço.


Um dia a metafísica do sangue vai lembrar-me



Margarida Piloto Garcia


Foto de Shelby Robinson


domingo, 31 de março de 2024

Adagio








Lentamente chego de um lugar de mistério

onde o tempo se alonga e a água é mágica

a correr num silêncio desconhecido.


Chego com a força do sangue

e o grito nasce-me na garganta

com a ferocidade que ainda não conheço.

O que importa é cerrar os punhos

e agarrar com as pequenas mãos

a carne e a pele de um mundo que deixei.


Chego ao lugar onde sou estranha e luto

sem saber ainda que muitas outras lutas

terei de enfrentar.

Ainda não suspiro nomes, nem palavras

só a fome grita e a saudade do lugar

escuro e silencioso onde dormia e sonhava.





Margarida Piloto Garcia

Excerto de pintura de Botticelli


 

sexta-feira, 22 de março de 2024

Amor e lágrimas




Há quanto tempo não escrevo uma carta de amor? Se calhar era paixão e eu não o percebi. Ou talvez um amor sonhado. Nada como um amor cismado a rasgar pulsos! Descubro umas tantas por aí, mas são mais de uma tristeza esfaqueada que se alonga na penumbra da casa. Em todas elas me abandonas como os pesadelos onde não há antídoto que dilua o veneno no sangue, ou morfina que debele a dor que cresce no silêncio.

Essas cartas perdidas, estão escritas em papel e não passam de cadafalsos onde o corpo foi guilhotinado. Neles se perde a cabeça mas ninguém aparentemente morre. Mas é mais ilusão, porque já todos são fantasmas destruídos pelas sílabas afiadas.

Tento de novo escrever a carta de amor mas o coração está carcomido, a vida estala, o desespero rói e a falta de ar não é produto de uma sinfonia apaixonada, mas apenas um carrasco que se ergue em cada manhã. Por vezes é mais fácil estender os dedos da noite sobre a nossa pele!

Retorno à carta, com ou sem destino, mas as palavras resvalam entre a ternura e a paixão, começam a escrever nos corpos com poemas entranhados a cortar como facas. Possivelmente acho que estou enganada, que não sei a quem escrevo, que não sei nada porque ninguém sabe. Mais uma vez volto a enganar-me mas afinal é do engano que nascem as cartas de amor.

Insisto mesmo que o amor se cale numa quase morte. E se há coisas que esqueci, outras não quero lembrar e é preferível misturá-las com sumo de laranja e beber cada gota como se fosse cicuta.

Surgem palavras cheias do meu sangue. Por vezes tímidas, por vezes destemidas, focadas numa guerra que cresce nas veias e cria uma devastação da qual não consigo regressar.

Talvez seja melhor assim. Voltarei à carta de amor quando as lágrimas regressarem ao meus olhos secos.




Margarida Piloto Garcia


Foto de Laura Makabresku

 

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Premonições


 



Não eram os silêncios que mantinham as bocas afastadas. Era mais aquela quietude do lugar vazio e a ansiedade rija dos dias preguiçosos e abandonados, onde a vida se estilhaçava.

No tempo, escondiam-se os gemidos do corpo a quererem ser quilómetros, enquanto corria atrás da premonição ditada pelo destino. Mas a estrada não era assim tão grande, reduzida que fora a meros centímetros de felicidade.

Desde pequeno que se fazia incólume às cicatrizes, numa astúcia visceralmente concebida, que os anos haviam de aperfeiçoar não dando hipótese a qualquer pedaço de alma remendado.

A mãe dissera-lhe que ele tinha em si esse dom, o código para decifrar sinas.

Nunca acreditara!

Talvez fossem sonhos, ou apenas desejos, aquilo que lhe fazia ver as coisas de uma outra forma, a adivinhar futuros roucos e respirados, na ânsia dos outros que não era a dele. Ele continuava imune ao que profetizava, o vento a assobiar-lhe nas sobrancelhas e as mãos presas na imperfeição seca dos lábios.

Até que tinha acontecido aquele dia!

Ela tinha surgido numa manhã de chuva, como uma arritmia nascida de trovões no peito, uma quase demência assimétrica que tanto o derramava em lágrimas, como lhe soltava o riso.

Tudo o que ele não era, emergia nela. Tudo o que almejava, despertava nela semente, flor e fruto. Nada existia a não ser o sorriso dela, a pele dela, a palavra pendurada no lábio rubro, o gesto tão angelical quanto demoníaco, com que o afagava e possuía. A vida destrambelhava-se louca e impúdica atrelada à premonição desvairada da felicidade eterna.

Porque só podia ser esse dom a dar-lhe tantas certezas, enquanto ele se atrevia a imaginar uma vagarosa eternidade! Nunca sequer lhe tinha passado pela cabeça, que as premonições só servissem aos outros e lhe estivessem negadas e encerradas na fria escuridão.

Agora, passados alguns anos, só sentia mágoa da sua incompetência. Tomara por premonição o sonho e o desejo e descansara no filho da mãe de um destino anunciado e prometido.

E não fora ele o arauto dessa desgraça?

Para quê o esforço inaudito se afinal tudo estava previsto?

Ela passou por ele e seguiu, tão forte como um guerreiro, tão insubmissa e decisiva quanto um sinal vermelho. Ele não percebeu nada, agarrado à fatalidade de uma premonição, sem entender o terror da solidão nas veias.

Agora o silêncio espreguiçava-se nele a consumi-lo numa indolência ofensiva. Na cama vazia não havia odores de sexo selvagem, nem gritos, nem palavras gemidas. No futuro só existia ele, sem espaço para sonhar, sem uma única premonição acertada.

Afinal, tudo o que ele sempre tinha querido, era a incerteza do destino e mãos como asas para voar.



Margarida Piloto Garcia