quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Declaração de intenções

 







Tudo é frágil.
O silêncio no céu da boca
a arquitetura das palavras
as noites sem tempo
a esquálida memória
as facas sem remorsos.

Nada resiste nesta queda
feita de unhas e garras
quase voluptuosa na apneia
com que nos tolhe e enlaça.

Em câmara lenta esmagamos
os lugares aos quais permanecemos fiéis
e a sangue frio quebramos os laços
num último arrepio.

Este tempo incerto
tem a estrutura de milénios
e o falso entendimento dos homens.

Resta-nos guardar o sol no peito
e aprender a geometria da morte.




Margarida Piloto Garcia. in COLECTÂNEA TOCA A ESCREVER-2021-publicado por In-Finita

Foto de Andrew Binger 


segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Vive




Agarra-te às pequenas coisas

mesmo que te digam que não servem para nada.

Tranca-as no coração

ou num papel que um dia será sépia da idade.

Arranja-lhes um canto na memória

e envolve-as nos dedos.

Sente-lhes o sabor e o aroma e vive

antes que sejas cinza.


De que serve tudo o resto?

Os grandes sentimentos ou a esperança

na bondade alheia, no amor partilhado?

De que serve aquilo que julgavas ter

mas se esboroa nas mãos

ou se dissolve numa simples chávena de café?


Na vida só aprendes que tens essa e mais nenhuma

e não te vou mentir só para te ver feliz.


Por isso deixa de ser tola e trinca mais uma vez

a maçã envenenada.




Margarida Piloto Garcia-in COLECTÂNEA TOCA A ESCREVER-2021-publicado por In-Finita







 

Tempo das arestas


 



Este é o tempo das arestas

das facas afiadas, dos gestos

que são línguas de segredos.


Este é o tempo onde descobres

que nada muda ou se transmuta

ou somos nós que permanecemos

tolhidos e agarrados a um egoísmo

que morde e infeta.


Tão grandes mas demasiado pequenos

nem o amor nos salva, esse que apregoamos

como se não o usássemos como um bisturi.


Somos titãs de tantos feitos

mas só nos une este mundo perdido

e uma natureza a gritar sobrevivência.


Neste tempo de cansaço

os sorrisos escondem-se.

Fica-nos este silêncio profundo

que nos morre nos olhos.



© Margarida Piloto Garcia-in ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA"Entre o sono e o sonho"-Volume XII


© Foto de Rui Palha


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Reencontro





É neste reencontro envergonhado
que o meu corpo cabe e escuta
e me transmuto e reinvento.
É nesta febre que me firo
a saliva engasgada a pulsar
a saudade presa nos dentes.
À superfície da pele
a paixão não naufraga
enquanto a onda de desejo
se quebrar furiosa em mim.
O que em mim renasce
é do fogo que semeias
flor e fruto proibido.
Mergulho fundo neste reencontro
numa apneia escura que me tolhe.
São tão impronunciáveis
as palavras que calamos
que o medo súbito desagua
e fere o que resta de nós.
Abandonada nos braços da maresia
cinjo as algas num silêncio aflito
e dou-me aos cardumes
que me mordem a pele.
Sigo uma rota áspera
e sou nómada de afetos.
Neste reencontro e no avesso de tudo
ainda brinco com o teu olhar.
Afinal, é de ti que vou ter mais saudades.




© Margarida Piloto Garcia in CONEXÕES ATLÂNTICAS V-publicado por IN-FINITA 2020







© Imagem Marta Syrko




segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Joana D'Arc






E se um dia as luzes se apagassem?
E se não déssemos mais flor e fruto
e o verbo trincado apodrecesse?
Mas e se todo o tempo se detivesse
nas minhas mãos, entre os meus dedos,
poderia eu travar a faca feroz
o lume da destruição nos seios duros
nas coxas aprumadas, nas línguas feridas
pelos beijos insanos debruados a dor?

O verbo ardente entra no corpo
não pede licença e não tem pudor.
Pinta a pele com o vermelho das amoras
e grita com violência nas veias.
Há uma respiração urgente
uma loucura obscura que nos torna deusas
um fogo carnívoro que nos enfeitiça.

Mas e se um dia viesse uma Joana D'Arc
ascética e guerreira, estender-te
a crueldade do caminho deserto
e reclamar-te em silêncio a carne
e roubar-te à loucura e ao amor
que farias mulher?




© Margarida Piloto Garcia- in- " A mulher no infinito dos tempos"-publicado por IDEÁRIOS 2020




© Imagem de Telmo Miel




quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Coração de mulher





Um coração de mulher não se parte assim
ao relento sem chama ou vibração.
Primeiro mói-se o sangue na raiz do medo
roem-se os ossos da desgraça e espalham-se
ao vento ou nas ondas da praia.
Segundo enleiam-se os dedos delicados
ou ásperos desfiando rosários
nas mãos que amassam e cozem pão.
Em seguida quebram-se os braços
que acolhem filhos com fragilidades
embuçadas para estancarem as feridas
ou reinventam-se as bocas que beijam
rendidas mas nunca saciadas, os amantes.
Um coração de mulher parece doce e mudo
imprevisto no desespero e indecifrável
à luz da aurora quando morde a manhã.
Um coração de mulher arde na dor
mas não se parte ou estilhaça assim.
Um coração de mulher segue sempre
mesmo que em carne viva.


© Margarida Piloto Garcia- in- " A mulher no infinito dos tempos"-publicado por IDEÁRIOS 2020

Imagem © Sanne Sanne






quarta-feira, 22 de julho de 2020

Chá de amor




Chá de amor
Sai do avião meio sonâmbulo e dormente com o corpo a precisar de ganhar asas próprias, cansado do pássaro de metal a voar por ele.
Despacha rapidamente as burocracias e mete no carro alugado as bagagens, que ainda trazem agarradas o cheiro da terra estrangeira onde passou os dois últimos anos.
Entra no carro e tudo o que lhe apetece é rodar pela ilha numa fome que a ausência fez surgir.
Foram profícuos e estimulantes aqueles anos passados com os tios emigrados há anos. Desenvolveu projectos, acabou o mestrado e deixou semeado um caminho para uma possível volta com um emprego no horizonte.
Pensa em tudo isto enquanto o carro se embrenha pela ilha dentro. Mastiga uns candies e deixa que os verdes lhe expludam nos olhos, quase palpáveis de tão luxuriantes.
Traz em si as sombras dos arranha céus e o frenesim da multidão agitada que lhe encheu os dias nos últimos anos.
Está sedento de um arroz de lapas, de uma boa manteiga, farto do cheiro enjoativo da pinabara, que os primos já nascidos na América, comem a toda a hora.
Guia numa premência obstinada de chegar aos locais que lhe trazem memórias impressas e nunca apagadas.
Finalmente chega à Baía de Stª Iria e é como se o oceano lhe enchesse a boca e as narinas de marés e vagas alterosas.
O Atlântico envia-lhe um apelo magnético que lhe tolda os olhos e lhe grita na mente.
Há muito que a ideia de navegar partindo da ilha é um bichinho a roê-lo e a carcomi-lo. É toda uma inquietação que lhe serve de fuga e lhe atiça os sonhos.
Mas não foi por isso que regressou a S.Miguel.
Sai do carro e pisa levemente o caminho com as snicas vermelhas compradas no último dia na América. Procura as hortênsias em molhos e passa-lhes a mão por cima apenas a afagá-las e a dizer-lhes:
-Cheguei.
Aquele primeiro impacto encheu-o de uma sensação que acha quase piegas tal o modo como o fez sentir.
Mas regressa ao carro porque hoje é o 1º sábado de Maio e sabe que Madalena vai estar em Porto Formoso.
Foi há cerca de dois anos que a conheceu. Trazia vestido o fato de uma apanhadeira de chá do séc. XIX. O enorme chapéu de palha sombreava-lhe o rosto, onde uns olhos cor do oceano o chamaram pela primeira vez. Por baixo dele um lenço de cor vermelha a despontar-lhe faíscas nos lábios rubros e carnudos.
Não sabe porque ficou cativo dos seus gestos e das mãos pequenas e delicadas que arrancavam as folhas novas de chá para depois as enrolarem nos tabuleiros de madeira.
João ficara hipnotizado pela visão de todas aquelas mulheres e homens a reconstituírem a apanha manual agora substituída pelas máquinas. Sentira-se transportado a uma outra era, imbuído de um espírito romântico e sonhador, tão diferente do homem racional que sempre fora.
Não sabia se tinha sido isso que o fizera logo reparar naquela rapariga banhada pelo sol da manhã, como se de uma rara flor se tratasse no mar de carreiros verdes e perfumados.
Fora um espectáculo magnífico ver tanta gente naquele labor, as mulheres numa azáfama entre cantigas e os homens a fazerem o transporte em grandes cestos de verga.
Madalena era uma espécie de ave canora num corpo pequeno e flexível. A sua voz encontrara facilmente um caminho através dos seus sentidos e tudo fizera para a conhecer.
Ela era bastante mais nova, apenas 18 anos cheios de sonhos, como se as neblinas que de repente assolam a ilha, também a envolvessem num estranho e impalpável manto, escondendo-lhe a realidade.
Mas João gostava dessa sua faceta, da quase imaterialidade de Madalena, quando ela lhe aparecia com as sandálias na mão, correndo descalça pela areia fina e acinzentada da Praia dos Moinhos. Os cabelos negros ondulavam na brisa matinal quando ela quase sem fôlego se pendurava no seu pescoço e lhe dizia:
- Vamos lálár?
Ele ria-se perdidamente com o seu falar tão pitoresco e sabendo quanto ela gostava de o ouvir responder-lhe assim, retorquia-lhe:
- Xoaquesim.
Dos risos cristalinos passavam às carícias amedrontadas enquanto ele, perdido nos olhos dela, lhe dizia baixinho:
- És uma gueixa.
- Même de vero?- respondia-lhe ela baixando os olhos recatada escondendo o desejo.
- Xoaquesim- respondia-lhe ele de novo num gemido contido e assustado.
O corpo miúdo dela refugiava-se cada vez mais no dele que lhe temia o contacto. Sentia por ela uma estranha atração, mas tinha receio de se envolver com alguém tão jovem e sem planos na vida. Tinha 29 anos e metas que desejava alcançar. Ela parecia-lhe de uma outra dimensão, alguém que o atraía como uma sereia enquanto se deitavam na areia a olharem para o céu, à espera da solução mágica para a vida.
João resistiu bastante tempo a enredar-se nos seus cabelos, a descobrir-lhe o corpo, quando lhe mordia os lábios a provocar-lhe epidérmicos desafios. Temia o apelo dos sentidos, daquele corpo que era terra e mar, simplicidade e desafio.Temia a sofreguidão da carne que apertava com rédeas fortes antes que de si se apossasse.
Não sabia como inseri-la na sua vida, como construir um futuro com ela. Sempre fora muito racional e aquela rapariga apelava ao sonhador escondido, descosendo facilmente os alinhavos que ele dera na sua alma contida e deixando-o nu de preconceitos e planos.
Foi no dia em que se aventuraram pela ruínas do Castelo de Porto Formoso, que a chuva do desejo os engoliu misturando-se com a que caía num dia húmido e frio.
Naquela guarita ainda de pé e resistindo à degradação, encontraram finalmente os nós com que ataram as mãos aos corpos a arder.
Ele mergulhou avidamente numa Madalena virgem e em botão, uma folha nova de chá de aroma fresco e inebriante. Ela deixou que ele lhe levasse o corpo tal como já fizera com tudo o que nela era vida.
Enquanto se resguardavam da chuva, João não se conseguia impedir de racionalizar. Não sabia ainda bem o que sentia por Madalena e se a queria parte da sua vida.
Quando partira para casa dos primos, nada lhe prometera. Não tinham os mesmos propósitos de vida, ela era duma juvenil rusticidade que o encantava mas não se daria bem nos meios que frequentava.
Durante uns 8 meses tinham-se falado e visto no computador, até que ambos se tinham afastado. Ele tinha dias ocupados com estudos e trabalhos, ela...ele não sabia, talvez se tivesse esquecido dele e arranjado alguém que a quisesse com o seu sotaque cerrado e expressões muito próprias e típicas que o faziam sorrir.
Sabia no entanto que há cerca de 2 anos tinham prometido encontrar-se na apanha do chá, mas agora parecia que nada fazia sentido após tantos meses sem se falarem.
No entanto, ele ali estava, ofegante e meio tonto, perscrutando a encosta verde a regurgitar de pessoas, mais parecendo um dos muitos turistas que assistiam ao evento.
Durante quase duas horas vagueou por entre as apanhadeiras tentando descobrir Madalena.
Por cada carreiro passado, por cada jovem avistada, a desilusão crescia nele como vagas de maré viva a galgar praias e o nó na garganta tornava-se cada vez maior e mais doloroso.
Por fim desistiu. Ela não estava. Afinal nem sequer percebia aquela certeza que o dominara. Nada sabia do rumo que ela tomara e a culpa fora dele.
Meteu-se no carro e guiou até Ponta Delgada. Queria esquecer-se de tudo, tornar a ser quem entendia, tratar aquela decepção como algo infantil , fugir dela e não a deixar ganhar gavinhas dentro dele.
Mas não era fácil, sentia-o, enquanto sentado num café com vista para o mar se debatia com um rol de emoções inesperadas.
Uma voz meiga e cristalina perguntou-lhe:
- Chá?
Voltou-se repentinamente, o susto cravado no semblante, o coração num corrupio de sentidos, numa pressa desenfreada de lhe sair pela boca juntamente com um grito.
Ali estava ela! O traje de apanhadeira tinha sido substituído por um vestido de linho branco que realçava um corpo que João não esquecera.
- Orange Pekoe?
- Claro, sabes que é o que mais gosto- respondeu ele a lembrar-se do aroma que sempre o acompanhava mesmo na casa dos tios.
- Então vamos pedir dois chás- disse Madalena sorrindo, enquanto se sentava muito senhoril e bonita a fazê-lo ruborizar com a sua delicadeza.
- Que é? Estás a estranhar-me?
- Bem, estava à espera daquela rapariga sempre a rir e a falar daquele modo que me punha a cabeça à roda.
- Pois é, vê bem o que não fazem dois anos a estudar no continente- respondeu ela e riu-se atirando a cabeça para trás a descobrir um pescoço que lhe apeteceu beijar, enquanto por dentro tudo encontrava rumo.
- Ah, mas se quiseres posso dizer-te que és um corisco muito mal amanhado por teres fugido de mim- e os olhos dela brilharam enquanto os lábios debitavam as frases que o encantavam.
O chá chegou e o seu aroma evolou-se das chávenas numa melancólica carícia parida nas encostas de S. Miguel. As mãos tocaram-se e dedos esguios enlearam-se noutros mais fortes.
Agora nada mais importava. Às perguntas por fazer respondiam as folhas de chá com prosas de aromas e sabores



© Margarida Piloto Garcia

domingo, 12 de julho de 2020

Promessa








Já te contei
que atravessei a linha do comboio
e me deitei nas azedas amarelas
para fugir da morte?
Por isso resolvi
que vou tentar morrer sossegada
sem fazer barulho
sem estilhaçar espelhos
sem rasgar livros
sem ferir os punhos nas paredes.
Tão de leve e silenciosamente
que se assemelhe a um sono profundo
onde ninguém está.
A solidão já é um hábito tão velho
que ganhou raízes e impregnou a pele.
Os meus olhos cansaram-se
a minha boca recusou-se
os meus braços cerraram-se de vez.
As Evas são assim, resilientes
mas sedutoras, a cheirar a baunilha e limão
passionárias que não podem ser sombras
e explodem no sol de qualquer revolução.

O único problema é que as mulheres
não morrem assim, devagar e sem dor.
As mulheres amam e vivem para sempre.




© Margarida Piloto Garcia in- " A mulher no infinito dos tempos"-publicado por IDEÁRIOS 2020

© Foto de  Andreas H. Bitesnich 



sábado, 1 de fevereiro de 2020

Beleza









O poeta deixa palavras carregadas em folhas brancas
ou até mesmo em guardanapos de papel.
O pintor eleva a ninfa anónima
a aparições que os homens disputam.
O escultor brande o cinzel
e transforma o mistério frio e impassível
na deusa ardente que nos emudece.
O fotógrafo, o cineasta, qualquer deles
procura o que germina dentro da pele
e sussurra pelas noites como um estalar de chicote.
Nos amantes há gestos presos e beijos inquietos
explosões feitas de estrelas cadentes
incêndios gemidos e sílabas selvagens.
Por aí, a natureza é um poema ávido
uma maçã carnuda a ser mordida plena de seiva
uma litania como um arpão de esperança
uma epifania de mil angústias
escritas através do tempo em velhos papiros.
Tudo é beleza, até mesmo os disparos certeiros
deste mundo pleno de insanidade.



© Margarida Piloto Garcia-OPUS-3-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2020


segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Equilíbrio







Abro as cartas que perderam a cor
e só leio gritos.
Tento esticar as asas para me equilibrar
mas os ventos desnudam-me e sem pedir licença
trazem-te de volta.
Volto ao vazio, à cumplicidade mecânica e obscena,
à submissão feita de pedra lascada, ao amor polido,
à arcaica história das rosas com espinhos.
E retorno ao denodado equilíbrio, sem saber a direção,
a colocar pé ante pé, sem renascimentos pretéritos.
Sei que a esperança de viver está toda nesse equilíbrio
mas este silêncio é uma ferida aberta
um corpo inteiro rasgado ao cosmos.
Caminho numa corda tensa, numa ânsia agonizada.
Sou transparente neste precipício, neste bater de asas
e amo cada caminho tal como os reescrevo com raiva.
Submerjo-me em lagos frios, sem que os lótus
me brotem dos lábios ressequidos.
É tão depressa esta vida que nos marca o ventre
que nos esmaga os seios e enruga os olhos!
Equilíbrio é a insubmissão nesta terra impura.
Quando a guerra chama, escrevo com canetas
de vermelho sangue permanente
as palavras cansadas onde o equilíbrio se perdeu.




© Margarida Piloto Garcia.-OPUS-3-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2020
Imagem © Benjamin Von Wong



Síndroma da Branca de Neve






Desde criança que aqueles rituais eram a sua razão de ser. Lembra-se dos mais pequenos pormenores, das minúcias, dos detalhes.
O quarto da mãe tinha um cheiro característico que ainda hoje paira no ar. Era um misto de frescura primaveril, com notas picantes e doiradas de algo mais profundo e sensual.
Tudo no quarto estava estudado para dar uma noção de langor e lassidez. Nada de coisas inúteis ou em excesso, demasiado pesadas ou ricas. Apenas uma beleza displicente e um não sei quê de abandono dos sentidos.
Sempre assim fora, uma espécie de divisão mágica que frequentava religiosamente, numa adoração sem limites.
Perpendicular à janela existia um enorme espelho de corpo inteiro, que no seu suporte basculante, era a presença dominante do quarto. A moldura era cor de prata pesada e antiga e tinha um toque frio mas suave e aveludado.
À medida que crescia ia acariciando o metal, chegando cada vez mais alto, até ter atingido a idade de lhe poder tocar no topo. Tinha tido uma tremenda sensação de euforia, como se tal significasse ter atingido a plenitude da vida e descoberto finalmente os seus mistérios.
O espelho era magnífico, de um brilho metálico mesmerizante e uma nitidez ímpar.
Ainda criança, nunca se cansava de observar aquela cerimónia, que a mãe efectuava em frente ao espelho.
Durante quase uma hora, ela ia desnudando o corpo pouco a pouco e observando meticulosamente cada nesga de pele. Com mãos pequenas que achava lindas e um dia invejaria, a mãe passava minuciosas doses de um óleo a cheirar a laranjas e a aromas exóticos, executando uma dança com as pontas finas dos dedos. Círculos ora concêntricos, ora excêntricos, afloravam-lhe a pele que ficava rosada e sombreada por uma leve penugem doirada e brilhante.
Era pura fascinação observar as rendas da lingerie que ela vestia vagarosamente, as meias transparentes e acetinadas e todos os gestos que o corpo ritmicamente bailava, numa sinfonia habilmente orquestrada.
Via-a dar imensas voltas e reviravoltas ao espelho, enquanto se vestia e despia, na eterna indecisão do que melhor lhe ficaria. Sorria , fazia esgares, mirando o seu reflexo com ar de estrela de cinema.
No fim a mãe dava-lhe um beijo repenicado e lançava-lhe um olhar inquiridor, como se a criança lhe pudesse dar a aprovação final que desejava.
Quantas vezes ficara a olhar para o espelho, tentando perceber em si os traços da progenitora!
Já na adolescência, aqueles momentos mais íntimos foram sendo cerceados. Mas continuava a ter o privilégio de assistir à parte final daquele ritual mágico.
A mãe já não era tão jovem mas tinha ainda um fascínio que conseguia transmitir.
Adorava ver as suas mãos esguias, pousarem no pescoço alto, um colar de pérolas nacaradas com um brilho frio mas suave. Ajudava-a muitas vezes a apertar o fecho, uma pequena borboleta de ouro, cravejada de diamantes negros. O cabelo fulvo, era uma chama viva domada de vez em quando num elegante apanhado.
Quando a mãe saía aproveitava para o seu momento especial. Toda a sua, ainda curta vida, fora construída à volta daquele quarto, daqueles momentos e daquele espelho.
Lembra-se da primeira vez que se olhou nele, as mãos a tocarem o cabelo liso e negro, herdado do pai.

Num jeito meio temeroso, meio brincalhão, recordara-se da história, tantas vezes contada em criança e ironicamente olhando o espelho, perguntara:
- Espelho meu, diz-me se há alguém com maior beleza do que eu?
A resposta era-lhe dada pelo reflexo que a mãe parecia ter deixado no espelho.
Aproveitava então o tempo em que ninguém estava em casa, para vestir e despir as roupas perfumadas, cheirar cremes e pós, experimentar colares e lenços, pentear os cabelos com a escova larga e macia.
De vez em quando repetia para o espelho a pergunta fatal:
- Espelho meu, diz-me se há alguém com maior beleza do que eu?
Inevitavelmente a resposta não era o seu reflexo, mas outro, sempre presente mesmo quando não estava.
O tempo foi deslizando entre realidades e sonhos, privilegiando as primeiras e sendo carrasco dos segundos. Foi descobrindo no rosto daquela mulher a quem seguia os passos, uma ruga mais marcada, a pele menos firme e rosada, o cabelo mais baço, onde os brancos se escondiam sob a ilusão da tinta. Deixou de assistir àquele cerimonial que a mãe repetia diariamente. Já não sentia o mesmo fascínio e achava que tinha aprendido tudo. Na mãe via-se uma debilidade que se foi acentuando, obrigando-a, tal como agora, a passar temporadas no hospital.
No seu íntimo algo se regozijou pecaminosamente.
Desejou que os dias passassem rápidos, frenéticos, a atropelarem o tempo. Precisava que a idade reclamasse por fim os seus direitos.
Agora frequentava aquele quarto todos os dias, tomando-o como seu, faltando às aulas e fugindo de tudo aquilo que lhe tinham querido impingir sem se importarem com a sua opinião e com quem realmente sente que é.
Num espectáculo que lhe envaidecia o ego, vestia-se e despia-se posando para o enorme espelho.
Mas agora, à pergunta habitualmente feita, o reflexo mostrado é o seu. Cabelos negros deixados crescer, saltos altos vertiginosos, vestido justo e decotado, soutien almofadado a esconder ( por enquanto ) a falta de seios, meias negras nas pernas depiladas, boca pintada de vermelho e uma base compacta a esconder a barba incipiente, feita ao amanhecer.
Agora a mais bela é “ela”.

© Margarida Piloto Garcia.

Foto de © Veri Apriyatno



domingo, 19 de janeiro de 2020

Amor por inteiro







Nem metade, nem três quartos de um amor. O que sempre quis foi um amor por inteiro. Sabes, aquele amor que imaginava no meio das giestas bravas que cercavam a casa, os teus cabelos inclinados sobre mim, o silêncio a gritar o zumbido das abelhas, os sentidos a montarem armadilhas e as tuas mãos a orquestrarem sinfonias. A urgência de amar mordia a tarde calada e eu engasgava os gemidos que cresciam no peito.
O que sempre quis foi um amor inteiro. Nada de passos gelados a fazerem gemer o soalho antigo, nem noites disfarçadas de lancinantes esperas, o medo a deslizar das sombras e a cravar as unhas na cama deserta. Eu a lembrar o estio a romper das janelas, o vento suão a perpassar no meu corpo enquanto a tua voz cantava Fistful of love e as tuas mãos peregrinavam a viola antes de se desmoronarem com fingida ferocidade sobre mim.
Não vale a pena chorar. Vem um algoritmo e apaga-te de vez as lágrimas, encerra-te na distância e transforma o caos da paixão numa caixa cinzenta e pardacenta. Nem todas as cartas de amor são felizes. A prova está nesta que vou colando, letra após letra.
Criei o hábito de sonhar. Antes eram sonhos de amor onde corria o risco de me acidentar. Era um risco de morte feito de olhares negros carregados dos beijos gulosos com que canibalizávamos as bocas. Era tudo uma questão de sobrevivência, a incapacidade de conter o grito e a compostura. Mas depois o engano cresceu no escuro e o calendário enlouqueceu. Não há versos ou notas de música que o façam parar. Não existem fórmulas mágicas ou passos de dança, capazes de fazer desaparecer a desilusão.
Quantas décimas tem um amor? Um amor inteiro feito da sedução da areia, do cheiro da maresia, da rendição à vida sem esperar qualquer absolvição.
Agora a noite é densa, feita de um pesadelo recorrente. É difícil respirar enquanto se pesa um coração. Quantos gramas para um amor inteiro? Para o saber talvez seja preciso renegar as almas fraturadas e sondar os filósofos da felicidade, aqueles que se embebedam de estrelas e atravessam a vida cheios de certezas. Gostava de ser assim. Talvez tenha sido assim, sem as ideias de fim de mundo que me atravessam.
Continuo a não aceitar, um meio amor, ou três quartos dele. Talvez seja louca em exigir um amor inteiro, por isso não sei escrever cartas de amor.
Afinal o poeta tinha razão. Todas as cartas de amor são ridículas.





© Margarida Piloto Garcia-in III COLECTÂNEA DE CARTAS DE AMOR-"TRÊS QUARTOS DE UM AMOR"-publicado por CHIADO BOOKS-2020



© Foto de Josh Adamski


Link: www.radiovizela.pt/programa-hora-da-poesia

https://www.mixcloud.com/Radiovizela/hora-da-poesia-programa-sobre-margarida-piloto-garcia-150120/




quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Amor







Das razões do amor
dizem uns que sabem, outros que o sentem.
Se ele arde, se ele é a álgebra da vida
se é ferida que adivinhas e te impede de morrer
se tanto te torna exultante ou descontente
se te faz içar as bandeiras da fé
ou lutar em tempos de anarquia
se o amor te faz nascer e renascer
pequeno ou imenso como lava ou tsunami
se o sentes, devora-o.
Come-o até ao caroço e rejubila.
Deixa que o suco escorra e em ti se abrigue.
Conjuga verbos inexistentes
e inventa marés.
Constrói com dedos corajosos a sábia magia
e brinda furtivamente aos deuses
não vá a sorte explodir desassossegada.
Agasalha os sentidos , sempre na incerteza dos poetas.
Depois, ajoelha e engana a morte.
Afinal, o amor é isso mesmo
uma crença na eternidade.




© Margarida Piloto Garcia-OPUS-3-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2020



© Foto de Alicja Reczek