domingo, 19 de janeiro de 2020

Amor por inteiro







Nem metade, nem três quartos de um amor. O que sempre quis foi um amor por inteiro. Sabes, aquele amor que imaginava no meio das giestas bravas que cercavam a casa, os teus cabelos inclinados sobre mim, o silêncio a gritar o zumbido das abelhas, os sentidos a montarem armadilhas e as tuas mãos a orquestrarem sinfonias. A urgência de amar mordia a tarde calada e eu engasgava os gemidos que cresciam no peito.
O que sempre quis foi um amor inteiro. Nada de passos gelados a fazerem gemer o soalho antigo, nem noites disfarçadas de lancinantes esperas, o medo a deslizar das sombras e a cravar as unhas na cama deserta. Eu a lembrar o estio a romper das janelas, o vento suão a perpassar no meu corpo enquanto a tua voz cantava Fistful of love e as tuas mãos peregrinavam a viola antes de se desmoronarem com fingida ferocidade sobre mim.
Não vale a pena chorar. Vem um algoritmo e apaga-te de vez as lágrimas, encerra-te na distância e transforma o caos da paixão numa caixa cinzenta e pardacenta. Nem todas as cartas de amor são felizes. A prova está nesta que vou colando, letra após letra.
Criei o hábito de sonhar. Antes eram sonhos de amor onde corria o risco de me acidentar. Era um risco de morte feito de olhares negros carregados dos beijos gulosos com que canibalizávamos as bocas. Era tudo uma questão de sobrevivência, a incapacidade de conter o grito e a compostura. Mas depois o engano cresceu no escuro e o calendário enlouqueceu. Não há versos ou notas de música que o façam parar. Não existem fórmulas mágicas ou passos de dança, capazes de fazer desaparecer a desilusão.
Quantas décimas tem um amor? Um amor inteiro feito da sedução da areia, do cheiro da maresia, da rendição à vida sem esperar qualquer absolvição.
Agora a noite é densa, feita de um pesadelo recorrente. É difícil respirar enquanto se pesa um coração. Quantos gramas para um amor inteiro? Para o saber talvez seja preciso renegar as almas fraturadas e sondar os filósofos da felicidade, aqueles que se embebedam de estrelas e atravessam a vida cheios de certezas. Gostava de ser assim. Talvez tenha sido assim, sem as ideias de fim de mundo que me atravessam.
Continuo a não aceitar, um meio amor, ou três quartos dele. Talvez seja louca em exigir um amor inteiro, por isso não sei escrever cartas de amor.
Afinal o poeta tinha razão. Todas as cartas de amor são ridículas.





© Margarida Piloto Garcia-in III COLECTÂNEA DE CARTAS DE AMOR-"TRÊS QUARTOS DE UM AMOR"-publicado por CHIADO BOOKS-2020



© Foto de Josh Adamski