segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Ouves?





Ouves?

São as hienas comprometidas

com a noite a rirem-se numa

contagem decrescente para o rasgar

das vidas onde cravam dentes ágeis.

Já nós seguimos apáticos e meio cegos

sem saber o que nos espera

nas ruas que não mudam de lugar.


Ouves?

É a música que nos invade os passos

e nos cala a boca farta de palavras do passado.

A febre quebra-nos os ossos

desfazendo a dança e o corpo esquece

as memórias das promessas feitas.


Ouves?

As hienas voltaram assim que

me largaste a mão mas o meu vestido

só morreu na boca das traças.




Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


Pintura de Clare Elsaesser


 

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Remendos





Nenhum remendo sutura a minha pele

nenhum anjo ampara a minha queda

nenhuma curva na estrada me esconde

de um lugar onde não cabes.


Os espelhos têm tantas faces

onde finjo morrer refletida em mil pedaços

e as portas não abrem um futuro

de que não tenho as chaves.


Falo comigo sempre que chegas tarde

ou mesmo se não vens e os olhos ardem

na inevitável passagem do tempo.

E volto a costurar os meus sussurros

presos na pele nesta manhã obscura.


O vento suão esmaga os lençóis

contra o meu corpo e eu digo-te

que estou farta deste manancial de auroras

e não posso esperar mais.




©️ Margarida Piloto Garcia.- in CONEXÕES ATLÂNTICAS VI-publicado por In-Finita 2022


Foto de Vivienne Mok

 

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Setembro



A contabilidade de Setembro

chega como a última tempestade de verão.

Negas-me a sede do esquecimento

enquanto as marés vivas se jogam na praia

e eu me preparo para o afeto amarfanhado

rasgado pelos ladrões de sonhos que me devoram

a vida.

Setembro tem esta febre que me consome

numa interminável e alucinante indiscrição.

Sinto que caminho no vazio

numa voracidade enigmática que me arrasta

entre algas e que já não sei ver.

As minhas mãos desenham linhas circulares

na areia fresca.

Sei que continuo a respirar mesmo neste

lugar incerto onde a metafísica do sangue

se imiscui na água salgada.


E depois detonas em tempo certo

o meu coração partido.


 © Margarida Piloto Garcia-in ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA"Entre o sono e o sonho"-Volume XIV


 

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Algumas vezes

 




- Responsabilidade de quê?
- A responsabilidade de ter olhos quando os outros perderam.


José Saramago






Algumas vezes pouco sabes de mim.

Escutas a insensatez do que dizes e

o sotaque das nuvens é ligeiramente azul.

Tu não vês que os desconsolos das derrotas

já nem se calam no plasma dos lençóis

mas adormeces numa cegueira contínua

que não é coisa alguma.

Calar-me. Esconder o canto na garganta

aos soluços, renegando as linhas débeis

do teu perfil devorado em tantos incêndios.

Mas a tua cegueira move-se na escuridão

e as palavras nascem e morrem no mesmo dia

em que os espaços vazios não precisam

de ordem ou ponto de partida.

Não te digo nada porque as palavras podem

tropeçar nos adereços de uma vida atormentada

mas esta pele que é sinónimo de sangue

antes de ir embora

ainda te deseja algumas vezes.




Margarida Piloto Garcia in- Tributo a Agustina e Saramago. Publicado por Temas Originais-2022 



Foto de Kultur Tava


domingo, 10 de julho de 2022

Espera





                                            Grassa a fome nas comissuras dos lábios

e na língua fala a semente do vício.

No entanto teimo em ir à boleia das vagas

enquanto o grito espreita num botão de camisa

desabotoado em rota encapelada de arrepios

na cicatriz nua dos olhos de uma fúria ausente

nas aspas de uma vida feita de raízes imóveis

a crescerem para dentro vermelhos naufragados.

E no poema cala-se a dor , a raiva, a luta

faz-se oco este lugar de silabas desperto

eternamente ansioso, febril e nunca saciado

na espera muda do que lhe pertence.




Margarida Piloto Garcia



 

sábado, 21 de maio de 2022

Não







 


Não, não vou dizer guerra

falar de guerra, encher a boca

com a palavra guerra.

Eliminei-a de todos os dicionários

de todos os livros, de todas as enciclopédias.

Ostracizei a palavra em todas as línguas

e dialetos para que ninguém a pronuncie

a leia, a desenhe ou sequer a sonhe.

Não a fechei numa caixa, não a atirei ao mar

nem a mandei para o espaço.

Simplesmente fi-la desaparecer.

Como? Não me perguntem. Desapareceu

e o modo como o fiz fugiu-me da memória.


Agora as crianças não sabem o que é

os homens não a conseguem criar

e a imaginação libertou outras palavras

quentes e suaves e dentro de todos

numa teimosia frágil o amor renasceu.


Não, não vou negar como o passado

me tentou enganar, mas esta imensa escuridão

deixou-nos de mão dada e a alvorada já

não tem arrependimentos inesperados.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Memória





Há dias em que não me lembro de nada

sigo uma rota de crateras extintas

e vou construindo estações de pele e sal.

Alimento parábolas para fintar as horas

e peneirar as dúvidas cinzentas.

Lá fora a vida espera em gestos inventados

seguindo uma lei sálica que não sei quebrar.

As palavras não frutificam

no deserto da memória.

Este não é o meu mar

este não é o meu leito

esta não é por certo a minha vida.

Muito antes de temer os dias

nos solavancos da terra a prender os pés

muito aquém das gaiolas que se tornam

presenças diárias, entre as esquinas do sol

fui aprendendo a segurar as quedas.

As mágoas disfarçam-se num arroz doce

polvilhado de afetos gritantes.


Há que dizer que as mouras encantadas

são sempre desfeitas pelo destino.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



Foto de Monia Merlo


 

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Preguiça





Sou o sangue que te alimenta

a raiva que te ruge o entardecer

a ave que te debica os ossos

a cama vazia que te esqueceu.


Sou o adereço de uma peça teatral

o jogo entre a chuva e o sol

o ranger do sonho na distância

a escuridão sedenta de loucura.


Sou a espada e a flecha

um dia incompleto e sem fim.

Sou o espanto que te cala a solidão

e o sumo que te explode nos lábios.


Sou a tua rua palmilhada

e as minhas mãos pequenas agarram

os desesperos incómodos

quando a vida se agarra às urgências.


Sou tudo isso mas a preguiça

não me deixa mudar de rumo

e ata-me as lágrimas, a língua e os desejos.


Talvez a possa esvaziar de sangue e gritar.




Margarida Piloto Garcia in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



segunda-feira, 18 de abril de 2022

Neblina








Às vezes ainda espero ver-te o vulto

numa qualquer manhã de neblina.

O sol esconde-se no dia mascarado

e ainda há rumores de estrelas

nas palavras que não dizes.

Tenho um cheiro a laranjas nas mãos

e o meu corpo não sabe o que o espera.

Se calhar não sabemos mesmo nada

e na pureza da neblina somos cegos

a arquitetar vazios com vogais redondas.

Este teu vulto é um particípio passado

uma ferida virtual que vai desabar.

O amor calou-se e agora somos também

surdos e mudos, vazios e resignados

a pisarmos esperanças perdidas.

Vestimo-nos com arame e farpas

a esconder um coração morto

e o intolerável peso do corpo.


Amanhã volto para ver se há neblina

ou se o teu vulto adormeceu para sempre

nas ruínas da memória.



Margarida Piloto -GarciainOPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


 

Desejos





Canta-me como se fosses um rouxinol

desvendando na tarde o eterno mistério

Dança-me em passos de fogo

num tango gemido e predador.

Colhe em mim o abraço lânguido

que te despe a pele e a cobiça.

Prende o meu beijo na tua boca nua

e arrasta as palavras nas papilas

num degustar febril.



Mas depois de me cantares e dançares

lavra-me com a tua língua peregrina

impúdica mas inocente.

Saliva-me as rotas que te conduzem

ao destino traçado.

Morde a eriçada penugem

banhada em rios de desejo.

Desagua em mim como se fosses cascata

como se fosses a criação do universo.



Usa dedos calibrados e perfeitos

para me desvendares.

Colhe na boca o pólen que semeiam

e deixa-me fazer de ti

um deus ou um escravo não importa.

Avança em mim como um conquistador.

Mas quando te desfizeres em ondas

despedaçadas e rítmicas

apenas gritarás o delírio do meu nome.




Margarida Piloto Garcia


Foto de Sasha van der Werf










sábado, 2 de abril de 2022

Sedução



                                                               Espera-me logo.

Levo a seda vermelha

a escorregar-te nas mãos.

Levo os olhos impúdicos

grávidos do vício do teu corpo.

Podes vendá-los e arrepiar-me a pele

com dedos eruditos mas selvagens.

Cega-me as mãos com nós de veludo

e depois, louco e voraz,

suga com a boca a raíz do prazer líquido

a bordar-me a pele em gotas translúcidas.

Submete-me julgando-te poderoso e vencedor.

Mas não te enganes! Entre os meus e os teus gritos

só tu és o cativo.



Margarida Piloto Garcia



 

Eu sei




Eu vou morrer antes de ti

é o que diz o calendário e o sangue nas veias

caçador das últimas batidas

ou os ossos frágeis a lamberem o túrgido sol.

É esse o caminho

e o que está escrito nas rugas desarmadas

e inocentes, esgravatadas num tempo sem pudor

Eu vou morrer antes de ti

e isso não me diz a lua nem os astros

nem sequer o ar que sucumbe a cada respiração

Eu vou e quero que assim seja

mas fica tanto por dizer na teima cega de calar

na boca de pedra que só treme à tua ausência

ou na revolta que cabe no intervalo dos sentidos

Sei-o porque a vida se gasta aliviada de milagres

incontida como se a bebesse aos tragos

a fugir de ser domesticada

Eu sei que vou morrer antes de ti

mas é da tua solidão que tenho medo.



Margarida Piloto Garcia


 

quinta-feira, 17 de março de 2022

O princípio e o fim






Chegou o fim e tu sabes

sabes que morreste e nem deste por isso.

Talvez o fim e o princípio

não façam assim tanta diferença

porque às vezes a dor e as lágrimas

são um fator comum a mostrar que temos pressa.

Não importa se uma bala nos ilumina

se um comboio nos leva de viagem

ou se uma faca nos lavra ou uma cama

nos enterra no silêncio.

Chega o tempo em que as mãos já não abraçam

e os beijos ficam esquecidos nas bocas.

A vida atirou-te de bruços para o abismo

e as palavras afogaram-se no que não disseste.

Não há fórmulas mágicas para sobreviver

a não ser as que deixas na inquietação de alguns.

Às vezes a morte é um carrasco distraído

que te leva quando começas a aprender

mesmo que seja um passo para a loucura.

Aqui não acontece nada a não ser

termos o mesmo destino.


O problema é que estás morta

mas continuas teimosamente a querer viver.



Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022



 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Anos

 









Presente, passado ou futuro

um emaranhado sem respeito

uma fera a comer-nos

ou uma impalpável fome

como uma dor antiga que não morre.

A nossa indiscreta fragilidade

precisa de um manual de sobrevivência.

É nele que te apoias

é nele que tens dez anos e todos os sonhos

ou quinze e conquistas a sede infinita.

Em cada ano somos apenas um inquilino

à espera de um despejo

ou um argumento que não é levado à cena.

O nosso coração é dado como entrada

no negócio da vida e raras vezes

somos reembolsados.

Dos anos vão ficando as cicatrizes

as veias azuis, as rugas da indiferença

os deslizes absurdos e a ingratidão

que atravessa o tempo até rasgar a pele.


Os anos são propícios a crueldades

e talvez eu me vá embora

sem que ninguém dê por isso. 




Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022



Foto de Alicja Posluszna

















quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Meses






Que são os meses senão uma sucessão de dias

a correrem pelas curvas da estrada?

Afinal é comigo que as noites se matam

numa velocidade que me explode nas mãos.

Há tantas paixões a albergarem os meses quentes

todas necessárias para que a cicuta não se beba

a víbora não te morda ou o espaço não te cale

ou leve ao precipício.


Balanças, balanças, mas não cais

até que a vida avariada se cale

sem que alguém a conserte.

Nos meses frios ardes sozinha

porque o amor só te ensina a perder.


Os meses correm e voltam frequentemente

a acordar a memória do corpo

e a pré-história da pele e do desejo antigo.

É urgente passar a mão pelos cabelos

enquanto as hienas não surgem

e te cospem na cara que tudo já foi dito.




© Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022


Foto de Dasha Pears

 

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Dias









Os dias correm num espaço antigo

como um medo infantil de uma queda brusca.

A lágrima é a monotonia da água correndo

nos feriados do corpo, inútil de tanta espera.

Alguém me falou de felicidade e eu aceito

estar aqui enquanto os dias permanecem mudos

numa morfina que me invade as veias.


São duros os dias, mesmo quando não parecem

e a felicidade é um pássaro aceso em cada madrugada.

Já não os conto porque a vida é uma aposta perdida.


Escrevo sempre que preciso ignorar as mentiras

tal como uma lista de desejos

onde anoto as esperanças caducadas.

Com o tempo, afiei as palavras

e agora os dias apenas se instalam.



© Margarida  Piloto  Garcia 

in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022



Foto de Daniel Arsham