segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Vive




Agarra-te às pequenas coisas

mesmo que te digam que não servem para nada.

Tranca-as no coração

ou num papel que um dia será sépia da idade.

Arranja-lhes um canto na memória

e envolve-as nos dedos.

Sente-lhes o sabor e o aroma e vive

antes que sejas cinza.


De que serve tudo o resto?

Os grandes sentimentos ou a esperança

na bondade alheia, no amor partilhado?

De que serve aquilo que julgavas ter

mas se esboroa nas mãos

ou se dissolve numa simples chávena de café?


Na vida só aprendes que tens essa e mais nenhuma

e não te vou mentir só para te ver feliz.


Por isso deixa de ser tola e trinca mais uma vez

a maçã envenenada.




Margarida Piloto Garcia-in COLECTÂNEA TOCA A ESCREVER-2021-publicado por In-Finita







 

Tempo das arestas


 



Este é o tempo das arestas

das facas afiadas, dos gestos

que são línguas de segredos.


Este é o tempo onde descobres

que nada muda ou se transmuta

ou somos nós que permanecemos

tolhidos e agarrados a um egoísmo

que morde e infeta.


Tão grandes mas demasiado pequenos

nem o amor nos salva, esse que apregoamos

como se não o usássemos como um bisturi.


Somos titãs de tantos feitos

mas só nos une este mundo perdido

e uma natureza a gritar sobrevivência.


Neste tempo de cansaço

os sorrisos escondem-se.

Fica-nos este silêncio profundo

que nos morre nos olhos.



© Margarida Piloto Garcia-in ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA"Entre o sono e o sonho"-Volume XII


© Foto de Rui Palha