segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Reencontro





É neste reencontro envergonhado
que o meu corpo cabe e escuta
e me transmuto e reinvento.
É nesta febre que me firo
a saliva engasgada a pulsar
a saudade presa nos dentes.
À superfície da pele
a paixão não naufraga
enquanto a onda de desejo
se quebrar furiosa em mim.
O que em mim renasce
é do fogo que semeias
flor e fruto proibido.
Mergulho fundo neste reencontro
numa apneia escura que me tolhe.
São tão impronunciáveis
as palavras que calamos
que o medo súbito desagua
e fere o que resta de nós.
Abandonada nos braços da maresia
cinjo as algas num silêncio aflito
e dou-me aos cardumes
que me mordem a pele.
Sigo uma rota áspera
e sou nómada de afetos.
Neste reencontro e no avesso de tudo
ainda brinco com o teu olhar.
Afinal, é de ti que vou ter mais saudades.




© Margarida Piloto Garcia in CONEXÕES ATLÂNTICAS V-publicado por IN-FINITA 2020







© Imagem Marta Syrko




segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Joana D'Arc






E se um dia as luzes se apagassem?
E se não déssemos mais flor e fruto
e o verbo trincado apodrecesse?
Mas e se todo o tempo se detivesse
nas minhas mãos, entre os meus dedos,
poderia eu travar a faca feroz
o lume da destruição nos seios duros
nas coxas aprumadas, nas línguas feridas
pelos beijos insanos debruados a dor?

O verbo ardente entra no corpo
não pede licença e não tem pudor.
Pinta a pele com o vermelho das amoras
e grita com violência nas veias.
Há uma respiração urgente
uma loucura obscura que nos torna deusas
um fogo carnívoro que nos enfeitiça.

Mas e se um dia viesse uma Joana D'Arc
ascética e guerreira, estender-te
a crueldade do caminho deserto
e reclamar-te em silêncio a carne
e roubar-te à loucura e ao amor
que farias mulher?




© Margarida Piloto Garcia- in- " A mulher no infinito dos tempos"-publicado por IDEÁRIOS 2020




© Imagem de Telmo Miel




quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Coração de mulher





Um coração de mulher não se parte assim
ao relento sem chama ou vibração.
Primeiro mói-se o sangue na raiz do medo
roem-se os ossos da desgraça e espalham-se
ao vento ou nas ondas da praia.
Segundo enleiam-se os dedos delicados
ou ásperos desfiando rosários
nas mãos que amassam e cozem pão.
Em seguida quebram-se os braços
que acolhem filhos com fragilidades
embuçadas para estancarem as feridas
ou reinventam-se as bocas que beijam
rendidas mas nunca saciadas, os amantes.
Um coração de mulher parece doce e mudo
imprevisto no desespero e indecifrável
à luz da aurora quando morde a manhã.
Um coração de mulher arde na dor
mas não se parte ou estilhaça assim.
Um coração de mulher segue sempre
mesmo que em carne viva.


© Margarida Piloto Garcia- in- " A mulher no infinito dos tempos"-publicado por IDEÁRIOS 2020

Imagem © Sanne Sanne