quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Remendos





Nenhum remendo sutura a minha pele

nenhum anjo ampara a minha queda

nenhuma curva na estrada me esconde

de um lugar onde não cabes.


Os espelhos têm tantas faces

onde finjo morrer refletida em mil pedaços

e as portas não abrem um futuro

de que não tenho as chaves.


Falo comigo sempre que chegas tarde

ou mesmo se não vens e os olhos ardem

na inevitável passagem do tempo.

E volto a costurar os meus sussurros

presos na pele nesta manhã obscura.


O vento suão esmaga os lençóis

contra o meu corpo e eu digo-te

que estou farta deste manancial de auroras

e não posso esperar mais.




©️ Margarida Piloto Garcia.- in CONEXÕES ATLÂNTICAS VI-publicado por In-Finita 2022


Foto de Vivienne Mok

 

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Setembro



A contabilidade de Setembro

chega como a última tempestade de verão.

Negas-me a sede do esquecimento

enquanto as marés vivas se jogam na praia

e eu me preparo para o afeto amarfanhado

rasgado pelos ladrões de sonhos que me devoram

a vida.

Setembro tem esta febre que me consome

numa interminável e alucinante indiscrição.

Sinto que caminho no vazio

numa voracidade enigmática que me arrasta

entre algas e que já não sei ver.

As minhas mãos desenham linhas circulares

na areia fresca.

Sei que continuo a respirar mesmo neste

lugar incerto onde a metafísica do sangue

se imiscui na água salgada.


E depois detonas em tempo certo

o meu coração partido.


 © Margarida Piloto Garcia-in ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA"Entre o sono e o sonho"-Volume XIV