terça-feira, 20 de agosto de 2019

NA NOITE-Parte V- Aceitação






Finalmente arrumei as gavetas.
Deitei fora as cartas. Eram fórmulas mágicas
a prenderem-me à terra e estigmas
com que passava as noites. Ficou muito espaço
para arrumar o coração. Agora também posso
pendurar as lágrimas no armário, ou melhor ainda,
levá-las com o cão à rua e deixá-las a adornar as flores.
Já têm pouco sal, não devem fazer mal.
Cuidar do amor exige mestria. Os pedaços colam
de modo informe e desacertado e deixam arestas.
Assumi a reforma, não quero cuidar de nada.
Deitei todos os despojos no lixo, varri o teu fantasma
e o tempo em que era pássaro de gaiola.
Dentro de mim não há mais mágoas trituradas
e os sonhos vêm sem que o nevoeiro me penetre os ossos.
Já não tropeço cega e rastejante a perseguir sombras.
Enquanto te amei, estive sempre só. Hoje entrei
pelo espelho e fiquei completa, cara a cara com o meu eu.
Cumprimentei-me com o suspiro de quem se reencontra
e lembrei-me da canção que antes ouvia.

E vem-nos à memória uma frase batida
Este é o primeiro dia do resto da tua vida”



© Margarida Piloto Garcia in-"RONDA DA NOITE"- publicado  por TEMAS ORIGINAIS- 2019

© Foto de Josefina Melo




sexta-feira, 16 de agosto de 2019

NA NOITE-Parte III e IV- Negociação, depressão









Estive a tentar compreender.
Enchi um copo com água e reguei as plantas.
Quando a tarde chegou tinha as janelas abertas
e as palavras saíam em fila, penduradas nas nuvens
ou nos bicos dos pássaros.
Mas não quero pensar se o passado é uma nódoa
ou se o destino me amarrou como um cancro terminal.
Assim sendo, esta vida não dá em poema
nem mesmo numa prosa linha a linha, poro a poro.
Se eu quisesse relembrar-te hoje, tinha de desaguar em mim o rio onde me lavaste o corpo e invadir as minhas reticências encharcadas de sentir.
Sem ti existe um deserto por onde passam tuaregues anónimos.
Tu sabias-me de cor mas sempre procurei ser em ti o que a imaginação mandava.
Não sei de olhos que me façam mais falta do que os teus. Profundos, mesmerizantes, a debitarem palavras com que o meu corpo se afogava num estremecimento primitivo.
Não sei de mãos que deseje mais, do que essas tuas, poderosas e invasivas , atiçando lume em cada toque.
As cartas de amor foram tatuadas na pele tão profundamente, que de cada vez que te recordo, me mordem e parasitam.
Se o amor se pudesse cristalizar não seria amor. Faz parte dele estas mudanças tão necessárias como as estações do ano.
Ontem eu não sabia de ti.
Hoje não sei mais de mim.




© Margarida Piloto Garcia in-"RONDA DA NOITE"- publicado  por TEMAS ORIGINAIS- 2019

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

NA NOITE-ParteII- Raiva




Raiva
Farpas afiadas a deixar esquírolas
Raiva
Rasgões violentos cuspidos da pele
Raiva
Um corpo em desvario a partir cortinas ocultas
opacas de tanto serem rasgadas e refeitas.
Negro, breu e sem vestígios de um raio de sol.
Negro, encardido com a mágoa
que os loucos não reconhecem.
Vontade de voar e cair livremente do espaço
a abraçar as árvores, a ser absorvida pelo mar,
a mergulhar na relva e nas azedas amarelas.
Pele a arder e púrpura nos olhos
chispas a chicotear paredes
e a sair lá para fora num bando de asas rutilantes.
Raiva
Negro, vermelho, cinza com laivos, laranja ardente
Raiva, raiva, raiva
e um coração a rebentar violência
e a esquecer doçuras.





© Margarida Piloto Garcia in-"RONDA DA NOITE"- publicado  por TEMAS ORIGINAIS 2019




segunda-feira, 12 de agosto de 2019

NA NOITE-Parte I- Negação





Já pensei bem e não sinto a tua falta.
Juro mesmo que esta sensação na cara
é apenas o orvalho da manhã
quando te fui esperar ao jardim
sem me lembrar da tua ausência.

Repito inúmeras vezes que não sinto a tua falta.
As repetições são apenas diálogos que faço comigo
enquanto vou limpando os teus passos
ao longo do corredor onde me abraçavas.
Deixei as fotografias onde estavas
não para te relembrar mas porque ficam bem
nos móveis do quarto onde não fazes falta.

Amanhã vou passear junto ao rio.
Se calhar bebo um café e falo com as gaivotas.
A camisola que deixaste ainda fala de ti mas não faz mal
não sinto a tua falta. A vida é mesmo assim.




© Margarida Piloto Garcia in-"RONDA DA NOITE"- publicado  por TEMAS ORIGINAIS- 2019




© Pintura de Heléne Bélande