segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Garrote








Não me escrevas.
Peço-te que não me escrevas.
Proíbo-te mesmo de me escreveres.
Afinal, a verdade nunca é a verdade.
Há inúmeras versões com o mesmo destino
irrepetível e abandonado, como coisa usada.

Não me escrevas.
A memória do corpo é coisa antiga
que tu acordas nas palavras. E quando a pele
se lembra, anseia pelo lume e tu não ardes.
As hienas chegam e riem das palavras
enquanto devoram a saudade.

Não me escrevas.
Não me lembres o momento em que o amor morreu
ou mesmo a chacina que a vida fez por aí.
Faço um esforço para aceitar as vozes que rasgam
pulsos e cravam facas no peito e insone
esmago sonhos nos vidros das janelas.

Posso aceitar o abismo
a penumbra dos lugares e até mesmo
a inutilidade da vida.

Mas por favor, não me escrevas.




© Margarida Piloto Garcia in "IDEÁRIOS" publicado por A CHAMA 2019



© Arte fotográfica de Marysia Bieniaszewska





domingo, 1 de setembro de 2019

Cegueira








Chove.
Chove há muito, mesmo que faça sol.
Chove desde o dia em que deixei de ver as nuvens
penduradas na janela a fingir horizonte.
Encurralada entre sombras, não meço distâncias
nem descubro gestos.
Onde a noite se deita, mascaro o amor de pedra
polindo as arestas mas cobrindo as feridas com sal.
As manhãs são sempre negras ou é a minha cegueira
que insiste em esconder o sol.

Chove.
Chove sempre que te relembro, mesmo que tenha
feito sol, mesmo que a primavera despontasse em mim.
É fundamental que as grilhetas não entrem no sangue
e as feridas não infetem com as memórias.
O que importa é que a ausência seja o tempo do nada

o tempo da cegueira.





© Margarida Piloto Garcia  in "IDEÁRIOS" publicado por A CHAMA 2019



© Foto de Georges Dambier