quarta-feira, 22 de julho de 2020

Chá de amor




Chá de amor
Sai do avião meio sonâmbulo e dormente com o corpo a precisar de ganhar asas próprias, cansado do pássaro de metal a voar por ele.
Despacha rapidamente as burocracias e mete no carro alugado as bagagens, que ainda trazem agarradas o cheiro da terra estrangeira onde passou os dois últimos anos.
Entra no carro e tudo o que lhe apetece é rodar pela ilha numa fome que a ausência fez surgir.
Foram profícuos e estimulantes aqueles anos passados com os tios emigrados há anos. Desenvolveu projectos, acabou o mestrado e deixou semeado um caminho para uma possível volta com um emprego no horizonte.
Pensa em tudo isto enquanto o carro se embrenha pela ilha dentro. Mastiga uns candies e deixa que os verdes lhe expludam nos olhos, quase palpáveis de tão luxuriantes.
Traz em si as sombras dos arranha céus e o frenesim da multidão agitada que lhe encheu os dias nos últimos anos.
Está sedento de um arroz de lapas, de uma boa manteiga, farto do cheiro enjoativo da pinabara, que os primos já nascidos na América, comem a toda a hora.
Guia numa premência obstinada de chegar aos locais que lhe trazem memórias impressas e nunca apagadas.
Finalmente chega à Baía de Stª Iria e é como se o oceano lhe enchesse a boca e as narinas de marés e vagas alterosas.
O Atlântico envia-lhe um apelo magnético que lhe tolda os olhos e lhe grita na mente.
Há muito que a ideia de navegar partindo da ilha é um bichinho a roê-lo e a carcomi-lo. É toda uma inquietação que lhe serve de fuga e lhe atiça os sonhos.
Mas não foi por isso que regressou a S.Miguel.
Sai do carro e pisa levemente o caminho com as snicas vermelhas compradas no último dia na América. Procura as hortênsias em molhos e passa-lhes a mão por cima apenas a afagá-las e a dizer-lhes:
-Cheguei.
Aquele primeiro impacto encheu-o de uma sensação que acha quase piegas tal o modo como o fez sentir.
Mas regressa ao carro porque hoje é o 1º sábado de Maio e sabe que Madalena vai estar em Porto Formoso.
Foi há cerca de dois anos que a conheceu. Trazia vestido o fato de uma apanhadeira de chá do séc. XIX. O enorme chapéu de palha sombreava-lhe o rosto, onde uns olhos cor do oceano o chamaram pela primeira vez. Por baixo dele um lenço de cor vermelha a despontar-lhe faíscas nos lábios rubros e carnudos.
Não sabe porque ficou cativo dos seus gestos e das mãos pequenas e delicadas que arrancavam as folhas novas de chá para depois as enrolarem nos tabuleiros de madeira.
João ficara hipnotizado pela visão de todas aquelas mulheres e homens a reconstituírem a apanha manual agora substituída pelas máquinas. Sentira-se transportado a uma outra era, imbuído de um espírito romântico e sonhador, tão diferente do homem racional que sempre fora.
Não sabia se tinha sido isso que o fizera logo reparar naquela rapariga banhada pelo sol da manhã, como se de uma rara flor se tratasse no mar de carreiros verdes e perfumados.
Fora um espectáculo magnífico ver tanta gente naquele labor, as mulheres numa azáfama entre cantigas e os homens a fazerem o transporte em grandes cestos de verga.
Madalena era uma espécie de ave canora num corpo pequeno e flexível. A sua voz encontrara facilmente um caminho através dos seus sentidos e tudo fizera para a conhecer.
Ela era bastante mais nova, apenas 18 anos cheios de sonhos, como se as neblinas que de repente assolam a ilha, também a envolvessem num estranho e impalpável manto, escondendo-lhe a realidade.
Mas João gostava dessa sua faceta, da quase imaterialidade de Madalena, quando ela lhe aparecia com as sandálias na mão, correndo descalça pela areia fina e acinzentada da Praia dos Moinhos. Os cabelos negros ondulavam na brisa matinal quando ela quase sem fôlego se pendurava no seu pescoço e lhe dizia:
- Vamos lálár?
Ele ria-se perdidamente com o seu falar tão pitoresco e sabendo quanto ela gostava de o ouvir responder-lhe assim, retorquia-lhe:
- Xoaquesim.
Dos risos cristalinos passavam às carícias amedrontadas enquanto ele, perdido nos olhos dela, lhe dizia baixinho:
- És uma gueixa.
- Même de vero?- respondia-lhe ela baixando os olhos recatada escondendo o desejo.
- Xoaquesim- respondia-lhe ele de novo num gemido contido e assustado.
O corpo miúdo dela refugiava-se cada vez mais no dele que lhe temia o contacto. Sentia por ela uma estranha atração, mas tinha receio de se envolver com alguém tão jovem e sem planos na vida. Tinha 29 anos e metas que desejava alcançar. Ela parecia-lhe de uma outra dimensão, alguém que o atraía como uma sereia enquanto se deitavam na areia a olharem para o céu, à espera da solução mágica para a vida.
João resistiu bastante tempo a enredar-se nos seus cabelos, a descobrir-lhe o corpo, quando lhe mordia os lábios a provocar-lhe epidérmicos desafios. Temia o apelo dos sentidos, daquele corpo que era terra e mar, simplicidade e desafio.Temia a sofreguidão da carne que apertava com rédeas fortes antes que de si se apossasse.
Não sabia como inseri-la na sua vida, como construir um futuro com ela. Sempre fora muito racional e aquela rapariga apelava ao sonhador escondido, descosendo facilmente os alinhavos que ele dera na sua alma contida e deixando-o nu de preconceitos e planos.
Foi no dia em que se aventuraram pela ruínas do Castelo de Porto Formoso, que a chuva do desejo os engoliu misturando-se com a que caía num dia húmido e frio.
Naquela guarita ainda de pé e resistindo à degradação, encontraram finalmente os nós com que ataram as mãos aos corpos a arder.
Ele mergulhou avidamente numa Madalena virgem e em botão, uma folha nova de chá de aroma fresco e inebriante. Ela deixou que ele lhe levasse o corpo tal como já fizera com tudo o que nela era vida.
Enquanto se resguardavam da chuva, João não se conseguia impedir de racionalizar. Não sabia ainda bem o que sentia por Madalena e se a queria parte da sua vida.
Quando partira para casa dos primos, nada lhe prometera. Não tinham os mesmos propósitos de vida, ela era duma juvenil rusticidade que o encantava mas não se daria bem nos meios que frequentava.
Durante uns 8 meses tinham-se falado e visto no computador, até que ambos se tinham afastado. Ele tinha dias ocupados com estudos e trabalhos, ela...ele não sabia, talvez se tivesse esquecido dele e arranjado alguém que a quisesse com o seu sotaque cerrado e expressões muito próprias e típicas que o faziam sorrir.
Sabia no entanto que há cerca de 2 anos tinham prometido encontrar-se na apanha do chá, mas agora parecia que nada fazia sentido após tantos meses sem se falarem.
No entanto, ele ali estava, ofegante e meio tonto, perscrutando a encosta verde a regurgitar de pessoas, mais parecendo um dos muitos turistas que assistiam ao evento.
Durante quase duas horas vagueou por entre as apanhadeiras tentando descobrir Madalena.
Por cada carreiro passado, por cada jovem avistada, a desilusão crescia nele como vagas de maré viva a galgar praias e o nó na garganta tornava-se cada vez maior e mais doloroso.
Por fim desistiu. Ela não estava. Afinal nem sequer percebia aquela certeza que o dominara. Nada sabia do rumo que ela tomara e a culpa fora dele.
Meteu-se no carro e guiou até Ponta Delgada. Queria esquecer-se de tudo, tornar a ser quem entendia, tratar aquela decepção como algo infantil , fugir dela e não a deixar ganhar gavinhas dentro dele.
Mas não era fácil, sentia-o, enquanto sentado num café com vista para o mar se debatia com um rol de emoções inesperadas.
Uma voz meiga e cristalina perguntou-lhe:
- Chá?
Voltou-se repentinamente, o susto cravado no semblante, o coração num corrupio de sentidos, numa pressa desenfreada de lhe sair pela boca juntamente com um grito.
Ali estava ela! O traje de apanhadeira tinha sido substituído por um vestido de linho branco que realçava um corpo que João não esquecera.
- Orange Pekoe?
- Claro, sabes que é o que mais gosto- respondeu ele a lembrar-se do aroma que sempre o acompanhava mesmo na casa dos tios.
- Então vamos pedir dois chás- disse Madalena sorrindo, enquanto se sentava muito senhoril e bonita a fazê-lo ruborizar com a sua delicadeza.
- Que é? Estás a estranhar-me?
- Bem, estava à espera daquela rapariga sempre a rir e a falar daquele modo que me punha a cabeça à roda.
- Pois é, vê bem o que não fazem dois anos a estudar no continente- respondeu ela e riu-se atirando a cabeça para trás a descobrir um pescoço que lhe apeteceu beijar, enquanto por dentro tudo encontrava rumo.
- Ah, mas se quiseres posso dizer-te que és um corisco muito mal amanhado por teres fugido de mim- e os olhos dela brilharam enquanto os lábios debitavam as frases que o encantavam.
O chá chegou e o seu aroma evolou-se das chávenas numa melancólica carícia parida nas encostas de S. Miguel. As mãos tocaram-se e dedos esguios enlearam-se noutros mais fortes.
Agora nada mais importava. Às perguntas por fazer respondiam as folhas de chá com prosas de aromas e sabores



© Margarida Piloto Garcia

domingo, 12 de julho de 2020

Promessa








Já te contei
que atravessei a linha do comboio
e me deitei nas azedas amarelas
para fugir da morte?
Por isso resolvi
que vou tentar morrer sossegada
sem fazer barulho
sem estilhaçar espelhos
sem rasgar livros
sem ferir os punhos nas paredes.
Tão de leve e silenciosamente
que se assemelhe a um sono profundo
onde ninguém está.
A solidão já é um hábito tão velho
que ganhou raízes e impregnou a pele.
Os meus olhos cansaram-se
a minha boca recusou-se
os meus braços cerraram-se de vez.
As Evas são assim, resilientes
mas sedutoras, a cheirar a baunilha e limão
passionárias que não podem ser sombras
e explodem no sol de qualquer revolução.

O único problema é que as mulheres
não morrem assim, devagar e sem dor.
As mulheres amam e vivem para sempre.




© Margarida Piloto Garcia in- " A mulher no infinito dos tempos"-publicado por IDEÁRIOS 2020

© Foto de  Andreas H. Bitesnich