sábado, 21 de maio de 2022

Não







 


Não, não vou dizer guerra

falar de guerra, encher a boca

com a palavra guerra.

Eliminei-a de todos os dicionários

de todos os livros, de todas as enciclopédias.

Ostracizei a palavra em todas as línguas

e dialetos para que ninguém a pronuncie

a leia, a desenhe ou sequer a sonhe.

Não a fechei numa caixa, não a atirei ao mar

nem a mandei para o espaço.

Simplesmente fi-la desaparecer.

Como? Não me perguntem. Desapareceu

e o modo como o fiz fugiu-me da memória.


Agora as crianças não sabem o que é

os homens não a conseguem criar

e a imaginação libertou outras palavras

quentes e suaves e dentro de todos

numa teimosia frágil o amor renasceu.


Não, não vou negar como o passado

me tentou enganar, mas esta imensa escuridão

deixou-nos de mão dada e a alvorada já

não tem arrependimentos inesperados.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Memória





Há dias em que não me lembro de nada

sigo uma rota de crateras extintas

e vou construindo estações de pele e sal.

Alimento parábolas para fintar as horas

e peneirar as dúvidas cinzentas.

Lá fora a vida espera em gestos inventados

seguindo uma lei sálica que não sei quebrar.

As palavras não frutificam

no deserto da memória.

Este não é o meu mar

este não é o meu leito

esta não é por certo a minha vida.

Muito antes de temer os dias

nos solavancos da terra a prender os pés

muito aquém das gaiolas que se tornam

presenças diárias, entre as esquinas do sol

fui aprendendo a segurar as quedas.

As mágoas disfarçam-se num arroz doce

polvilhado de afetos gritantes.


Há que dizer que as mouras encantadas

são sempre desfeitas pelo destino.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



Foto de Monia Merlo


 

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Preguiça





Sou o sangue que te alimenta

a raiva que te ruge o entardecer

a ave que te debica os ossos

a cama vazia que te esqueceu.


Sou o adereço de uma peça teatral

o jogo entre a chuva e o sol

o ranger do sonho na distância

a escuridão sedenta de loucura.


Sou a espada e a flecha

um dia incompleto e sem fim.

Sou o espanto que te cala a solidão

e o sumo que te explode nos lábios.


Sou a tua rua palmilhada

e as minhas mãos pequenas agarram

os desesperos incómodos

quando a vida se agarra às urgências.


Sou tudo isso mas a preguiça

não me deixa mudar de rumo

e ata-me as lágrimas, a língua e os desejos.


Talvez a possa esvaziar de sangue e gritar.




Margarida Piloto Garcia in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022