quarta-feira, 26 de junho de 2019
Faca mortal
Faca mortal
esse teu nome que me perfura
rompe e sussurra neste naufrágio.
Faca mortal
esta lembrança de mãos acesas
que me rebentam em cegarregas
sem fim à vista.
Faca mortal
estes sentidos não saciados
num faz de conta todo inventado
trocando o medo pelo vazio.
Visto este corpo, só com o teu
que se intromete e manipula.
Rubro o punhal que me embriaga
e eu intrépida abraço a lâmina
que se retorce dentro de mim.
Vem à lembrança o sol na pele
veias pulsando, bocas gritando
e eu amarrada no teu olhar.
Faca mortal
este desgosto.
© Margarida Piloto Garcia in OPUS-1-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por TEMAS ORIGINAIS-2018
domingo, 23 de junho de 2019
Entre a noite e o dia
Basta acordar cedo e fugir aos dialetos noturnos.
O medo esconde-se nas sombras
e nos silêncios. É uma serpente a devorar a luz.
O dia vive temerário e brilha como sílica ao sol.
Nele, os poemas são menos fatais e as clausuras
são menos verdadeiras e insensatas.
Não há leis nem teoremas que te ajudem
quando morres atropelada pelos sonhos.
Em qualquer estação do ano, a vida
é uma promessa imperfeita, uma construção
a desmoronar-se desde o passado.
Há uma morte repetida em cada dia
um revolver apontado à cabeça,
um apelo que guardamos por dentro
a tornar-se peso, a tornar-se sombra,
a respirar fundo feito veneno.
© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A SOPHIA DE MELLO BREYNER- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2019
Mulher
O que os olhos das mulheres dizem
tem o suspiro das feridas ligeiramente encobertas
com o nevoeiro das promessas.
O que os seus braços abraçam
são as opções de todas as batalhas femininas.
A suas bocas não falam só de amor
gritam enquanto se batem nesta selva.
Lá fora as crianças carregam sorrisos em bombas por explodir
e as mães lavam o sangue na areia onde as vergaram.
O medo não tem direito a beijos, nem a lágrimas apressadas
por isso as mulheres guardam-nos em cada ruga, em cada poro.
Sabem tudo mas engasgam as palavras porque o vento as devolve
por vezes em látegos de dor.
Amam na raiva e na meiguice. Estão no lado errado da lua
mas a luz explode nelas.
Intrometem-se, polinizam, abandonam-se e embriagam-se de amor.
Fecham as asas da crença mas intrépidas soltam-nas em alto voo.
Para falar de amor, as mulheres ajoelham-se como quem reza
porque dentro delas há sempre sonhos por cumprir.
© Margarida Piloto Garcia in- "OPUS-2"-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por TEMAS ORIGINAIS-2019
© Foto de Christian Coigny
segunda-feira, 17 de junho de 2019
O que resta
Do amor já nem resta o quarto vazio
o sol do outono e o vento do verão.
Foram-se as paredes cúmplices
e os beijos vorazes como papoilas.
As feridas abertas são exorcizadas
em equilíbrios acrobáticos.
Temos lâminas e espadas nas mãos
e um revólver na boca aberta
a encher de balas o que nos rodeia.
Fez-se noite tão depressa
as paredes encheram-se de bolor e
os quartos são habitados por outros amantes.
Já não sei se inventei afectos
ou se o medo cresceu no final
mas os pássaros ainda se deitam nesta praia
e a chuva ainda chora por nós.
© Margarida Piloto Garcia in "OPUS-1"-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por TEMAS ORIGINAIS-2018
© Foto de Rova
Vida e morte
O que a impede de morrer é aquela lua
no vapor vago e delirante da maré cheia.
O que a prende é a linha salgada
e o silêncio puro do corpo despido.
Impávida, cerca-se de suicídios teóricos
envoltos em fantasmas do passado.
Por causa dele está presa à raiz
à viagem sem retorno
às cumplicidades amarguradas.
O que a impede de viver
é a esperança ébria e imperfeita
que a massacra e lhe morde a vida.
© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A CAMILO PESSANHA- publicado por Temas Originais 2017
segunda-feira, 10 de junho de 2019
Pássaro
Pássaro azul, a tua boca
mora ao lado da minha e sobrevoa-me.
Cristalina, canta-me madrugadas
e beija-me com o cheiro do pão quente.
A luz da manhã pisa as flores moribundas
fere o silêncio e dá nome aos nossos corpos.
Pássaro vermelho, as tuas mãos
são tardes de um fulgor incandescente
silhuetas desassossegadas no corpo em fúria.
© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A CAMILO PESSANHA- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2017
segunda-feira, 3 de junho de 2019
Domingos
eivados de um convívio que se sente na carne
a antecipar o medo de uma nova semana.
Palpável é o suor dos dias
no cinabre que tinge todas as esperanças.
Só sabemos do ontem e a vida forra-nos a pele
segundo a segundo.
Por vezes ainda temos quinze anos
e o gosto de beijos na boca.
Puro engano.
Há que lavar bem a boca, pôr os óculos
e ver a crueza do dia.
© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A FERNANDO PESSOA- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2018
Interrogações (Ânsia)
Das palavras, dos sentidos, das coisas proibidas.
Escrevamos então um último poema.
Onde as armas se calam e o corpo se renega
beijemos com bocas de lobo aguardando a aurora.
De pé, ereta e imune a todos os desafios horizontais
num uivo que rasga, numa febre que se assume.
Afinal, basta apenas esta língua
que tudo fala, tudo desvenda, tudo canibaliza.
© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A FERNANDO PESSOA- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2018
© Foto de Alberto Bezzanca
Tempo de vida
Meço a idade pela sombra das árvores.
Onde o sol rendilhava os meus passos
crescem agora negros sombreados.
Ser a mesma pode ser ilusão
ou este mundo, por vezes duro, por vezes doce
desprendeu-se de mim e deu flor nas árvores.
Pergunto ao rio se se lembra de afagos e sobressaltos.
Não me responde mas navega-me por dentro.
Só o voo das gaivotas é o mesmo.
© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A FERNANDO PESSOA- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2018
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