segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Equilíbrio







Abro as cartas que perderam a cor
e só leio gritos.
Tento esticar as asas para me equilibrar
mas os ventos desnudam-me e sem pedir licença
trazem-te de volta.
Volto ao vazio, à cumplicidade mecânica e obscena,
à submissão feita de pedra lascada, ao amor polido,
à arcaica história das rosas com espinhos.
E retorno ao denodado equilíbrio, sem saber a direção,
a colocar pé ante pé, sem renascimentos pretéritos.
Sei que a esperança de viver está toda nesse equilíbrio
mas este silêncio é uma ferida aberta
um corpo inteiro rasgado ao cosmos.
Caminho numa corda tensa, numa ânsia agonizada.
Sou transparente neste precipício, neste bater de asas
e amo cada caminho tal como os reescrevo com raiva.
Submerjo-me em lagos frios, sem que os lótus
me brotem dos lábios ressequidos.
É tão depressa esta vida que nos marca o ventre
que nos esmaga os seios e enruga os olhos!
Equilíbrio é a insubmissão nesta terra impura.
Quando a guerra chama, escrevo com canetas
de vermelho sangue permanente
as palavras cansadas onde o equilíbrio se perdeu.




© Margarida Piloto Garcia.-OPUS-3-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2020
Imagem © Benjamin Von Wong



Síndroma da Branca de Neve






Desde criança que aqueles rituais eram a sua razão de ser. Lembra-se dos mais pequenos pormenores, das minúcias, dos detalhes.
O quarto da mãe tinha um cheiro característico que ainda hoje paira no ar. Era um misto de frescura primaveril, com notas picantes e doiradas de algo mais profundo e sensual.
Tudo no quarto estava estudado para dar uma noção de langor e lassidez. Nada de coisas inúteis ou em excesso, demasiado pesadas ou ricas. Apenas uma beleza displicente e um não sei quê de abandono dos sentidos.
Sempre assim fora, uma espécie de divisão mágica que frequentava religiosamente, numa adoração sem limites.
Perpendicular à janela existia um enorme espelho de corpo inteiro, que no seu suporte basculante, era a presença dominante do quarto. A moldura era cor de prata pesada e antiga e tinha um toque frio mas suave e aveludado.
À medida que crescia ia acariciando o metal, chegando cada vez mais alto, até ter atingido a idade de lhe poder tocar no topo. Tinha tido uma tremenda sensação de euforia, como se tal significasse ter atingido a plenitude da vida e descoberto finalmente os seus mistérios.
O espelho era magnífico, de um brilho metálico mesmerizante e uma nitidez ímpar.
Ainda criança, nunca se cansava de observar aquela cerimónia, que a mãe efectuava em frente ao espelho.
Durante quase uma hora, ela ia desnudando o corpo pouco a pouco e observando meticulosamente cada nesga de pele. Com mãos pequenas que achava lindas e um dia invejaria, a mãe passava minuciosas doses de um óleo a cheirar a laranjas e a aromas exóticos, executando uma dança com as pontas finas dos dedos. Círculos ora concêntricos, ora excêntricos, afloravam-lhe a pele que ficava rosada e sombreada por uma leve penugem doirada e brilhante.
Era pura fascinação observar as rendas da lingerie que ela vestia vagarosamente, as meias transparentes e acetinadas e todos os gestos que o corpo ritmicamente bailava, numa sinfonia habilmente orquestrada.
Via-a dar imensas voltas e reviravoltas ao espelho, enquanto se vestia e despia, na eterna indecisão do que melhor lhe ficaria. Sorria , fazia esgares, mirando o seu reflexo com ar de estrela de cinema.
No fim a mãe dava-lhe um beijo repenicado e lançava-lhe um olhar inquiridor, como se a criança lhe pudesse dar a aprovação final que desejava.
Quantas vezes ficara a olhar para o espelho, tentando perceber em si os traços da progenitora!
Já na adolescência, aqueles momentos mais íntimos foram sendo cerceados. Mas continuava a ter o privilégio de assistir à parte final daquele ritual mágico.
A mãe já não era tão jovem mas tinha ainda um fascínio que conseguia transmitir.
Adorava ver as suas mãos esguias, pousarem no pescoço alto, um colar de pérolas nacaradas com um brilho frio mas suave. Ajudava-a muitas vezes a apertar o fecho, uma pequena borboleta de ouro, cravejada de diamantes negros. O cabelo fulvo, era uma chama viva domada de vez em quando num elegante apanhado.
Quando a mãe saía aproveitava para o seu momento especial. Toda a sua, ainda curta vida, fora construída à volta daquele quarto, daqueles momentos e daquele espelho.
Lembra-se da primeira vez que se olhou nele, as mãos a tocarem o cabelo liso e negro, herdado do pai.

Num jeito meio temeroso, meio brincalhão, recordara-se da história, tantas vezes contada em criança e ironicamente olhando o espelho, perguntara:
- Espelho meu, diz-me se há alguém com maior beleza do que eu?
A resposta era-lhe dada pelo reflexo que a mãe parecia ter deixado no espelho.
Aproveitava então o tempo em que ninguém estava em casa, para vestir e despir as roupas perfumadas, cheirar cremes e pós, experimentar colares e lenços, pentear os cabelos com a escova larga e macia.
De vez em quando repetia para o espelho a pergunta fatal:
- Espelho meu, diz-me se há alguém com maior beleza do que eu?
Inevitavelmente a resposta não era o seu reflexo, mas outro, sempre presente mesmo quando não estava.
O tempo foi deslizando entre realidades e sonhos, privilegiando as primeiras e sendo carrasco dos segundos. Foi descobrindo no rosto daquela mulher a quem seguia os passos, uma ruga mais marcada, a pele menos firme e rosada, o cabelo mais baço, onde os brancos se escondiam sob a ilusão da tinta. Deixou de assistir àquele cerimonial que a mãe repetia diariamente. Já não sentia o mesmo fascínio e achava que tinha aprendido tudo. Na mãe via-se uma debilidade que se foi acentuando, obrigando-a, tal como agora, a passar temporadas no hospital.
No seu íntimo algo se regozijou pecaminosamente.
Desejou que os dias passassem rápidos, frenéticos, a atropelarem o tempo. Precisava que a idade reclamasse por fim os seus direitos.
Agora frequentava aquele quarto todos os dias, tomando-o como seu, faltando às aulas e fugindo de tudo aquilo que lhe tinham querido impingir sem se importarem com a sua opinião e com quem realmente sente que é.
Num espectáculo que lhe envaidecia o ego, vestia-se e despia-se posando para o enorme espelho.
Mas agora, à pergunta habitualmente feita, o reflexo mostrado é o seu. Cabelos negros deixados crescer, saltos altos vertiginosos, vestido justo e decotado, soutien almofadado a esconder ( por enquanto ) a falta de seios, meias negras nas pernas depiladas, boca pintada de vermelho e uma base compacta a esconder a barba incipiente, feita ao amanhecer.
Agora a mais bela é “ela”.

© Margarida Piloto Garcia.

Foto de © Veri Apriyatno



domingo, 19 de janeiro de 2020

Amor por inteiro







Nem metade, nem três quartos de um amor. O que sempre quis foi um amor por inteiro. Sabes, aquele amor que imaginava no meio das giestas bravas que cercavam a casa, os teus cabelos inclinados sobre mim, o silêncio a gritar o zumbido das abelhas, os sentidos a montarem armadilhas e as tuas mãos a orquestrarem sinfonias. A urgência de amar mordia a tarde calada e eu engasgava os gemidos que cresciam no peito.
O que sempre quis foi um amor inteiro. Nada de passos gelados a fazerem gemer o soalho antigo, nem noites disfarçadas de lancinantes esperas, o medo a deslizar das sombras e a cravar as unhas na cama deserta. Eu a lembrar o estio a romper das janelas, o vento suão a perpassar no meu corpo enquanto a tua voz cantava Fistful of love e as tuas mãos peregrinavam a viola antes de se desmoronarem com fingida ferocidade sobre mim.
Não vale a pena chorar. Vem um algoritmo e apaga-te de vez as lágrimas, encerra-te na distância e transforma o caos da paixão numa caixa cinzenta e pardacenta. Nem todas as cartas de amor são felizes. A prova está nesta que vou colando, letra após letra.
Criei o hábito de sonhar. Antes eram sonhos de amor onde corria o risco de me acidentar. Era um risco de morte feito de olhares negros carregados dos beijos gulosos com que canibalizávamos as bocas. Era tudo uma questão de sobrevivência, a incapacidade de conter o grito e a compostura. Mas depois o engano cresceu no escuro e o calendário enlouqueceu. Não há versos ou notas de música que o façam parar. Não existem fórmulas mágicas ou passos de dança, capazes de fazer desaparecer a desilusão.
Quantas décimas tem um amor? Um amor inteiro feito da sedução da areia, do cheiro da maresia, da rendição à vida sem esperar qualquer absolvição.
Agora a noite é densa, feita de um pesadelo recorrente. É difícil respirar enquanto se pesa um coração. Quantos gramas para um amor inteiro? Para o saber talvez seja preciso renegar as almas fraturadas e sondar os filósofos da felicidade, aqueles que se embebedam de estrelas e atravessam a vida cheios de certezas. Gostava de ser assim. Talvez tenha sido assim, sem as ideias de fim de mundo que me atravessam.
Continuo a não aceitar, um meio amor, ou três quartos dele. Talvez seja louca em exigir um amor inteiro, por isso não sei escrever cartas de amor.
Afinal o poeta tinha razão. Todas as cartas de amor são ridículas.





© Margarida Piloto Garcia-in III COLECTÂNEA DE CARTAS DE AMOR-"TRÊS QUARTOS DE UM AMOR"-publicado por CHIADO BOOKS-2020



© Foto de Josh Adamski


Link: www.radiovizela.pt/programa-hora-da-poesia

https://www.mixcloud.com/Radiovizela/hora-da-poesia-programa-sobre-margarida-piloto-garcia-150120/




quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Amor







Das razões do amor
dizem uns que sabem, outros que o sentem.
Se ele arde, se ele é a álgebra da vida
se é ferida que adivinhas e te impede de morrer
se tanto te torna exultante ou descontente
se te faz içar as bandeiras da fé
ou lutar em tempos de anarquia
se o amor te faz nascer e renascer
pequeno ou imenso como lava ou tsunami
se o sentes, devora-o.
Come-o até ao caroço e rejubila.
Deixa que o suco escorra e em ti se abrigue.
Conjuga verbos inexistentes
e inventa marés.
Constrói com dedos corajosos a sábia magia
e brinda furtivamente aos deuses
não vá a sorte explodir desassossegada.
Agasalha os sentidos , sempre na incerteza dos poetas.
Depois, ajoelha e engana a morte.
Afinal, o amor é isso mesmo
uma crença na eternidade.




© Margarida Piloto Garcia-OPUS-3-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2020



© Foto de Alicja Reczek



terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Pânico








Quando te aproximas, parto.
Refaço o caminho nesta fuga desamparada.
Nada me resta mas há mais perigo noutro percurso.
Alterno a vida, engasgo as dores
e a vida a metro não faz sentido.
Sucumbo ao salto, usurpo o golpe, monto a armadilha.
O medo instala-se e manipula, cega-me as asas.
Mas não há primavera na tua tela negra.
O teu “para sempre” tem a finitude de um caixão
de onde não posso ver as estrelas.
Os meus gritos são poeira cósmica
quartos minguantes cegos e distraídos.
Ninguém os ouve, ninguém os vê
apenas eu percorro as noturnas veias
à espera de encontrar um sangue penetrante
como uma estaca no fundo de mim.
Não é uma desistência esta fuga declarada.
Mas há estilhaços nos abraços e facas nas palavras.
Fico semente, colhida no terror de não dar flor.
Por isso parto com um cemitério de memórias
e as lâminas que tenho não me ferem mais
nem a voracidade dos dias me corta os dedos.



© Margarida Piloto Garcia-OPUS-3-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2020
© Foto de Suzy Parker