segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Síndroma da Branca de Neve






Desde criança que aqueles rituais eram a sua razão de ser. Lembra-se dos mais pequenos pormenores, das minúcias, dos detalhes.
O quarto da mãe tinha um cheiro característico que ainda hoje paira no ar. Era um misto de frescura primaveril, com notas picantes e doiradas de algo mais profundo e sensual.
Tudo no quarto estava estudado para dar uma noção de langor e lassidez. Nada de coisas inúteis ou em excesso, demasiado pesadas ou ricas. Apenas uma beleza displicente e um não sei quê de abandono dos sentidos.
Sempre assim fora, uma espécie de divisão mágica que frequentava religiosamente, numa adoração sem limites.
Perpendicular à janela existia um enorme espelho de corpo inteiro, que no seu suporte basculante, era a presença dominante do quarto. A moldura era cor de prata pesada e antiga e tinha um toque frio mas suave e aveludado.
À medida que crescia ia acariciando o metal, chegando cada vez mais alto, até ter atingido a idade de lhe poder tocar no topo. Tinha tido uma tremenda sensação de euforia, como se tal significasse ter atingido a plenitude da vida e descoberto finalmente os seus mistérios.
O espelho era magnífico, de um brilho metálico mesmerizante e uma nitidez ímpar.
Ainda criança, nunca se cansava de observar aquela cerimónia, que a mãe efectuava em frente ao espelho.
Durante quase uma hora, ela ia desnudando o corpo pouco a pouco e observando meticulosamente cada nesga de pele. Com mãos pequenas que achava lindas e um dia invejaria, a mãe passava minuciosas doses de um óleo a cheirar a laranjas e a aromas exóticos, executando uma dança com as pontas finas dos dedos. Círculos ora concêntricos, ora excêntricos, afloravam-lhe a pele que ficava rosada e sombreada por uma leve penugem doirada e brilhante.
Era pura fascinação observar as rendas da lingerie que ela vestia vagarosamente, as meias transparentes e acetinadas e todos os gestos que o corpo ritmicamente bailava, numa sinfonia habilmente orquestrada.
Via-a dar imensas voltas e reviravoltas ao espelho, enquanto se vestia e despia, na eterna indecisão do que melhor lhe ficaria. Sorria , fazia esgares, mirando o seu reflexo com ar de estrela de cinema.
No fim a mãe dava-lhe um beijo repenicado e lançava-lhe um olhar inquiridor, como se a criança lhe pudesse dar a aprovação final que desejava.
Quantas vezes ficara a olhar para o espelho, tentando perceber em si os traços da progenitora!
Já na adolescência, aqueles momentos mais íntimos foram sendo cerceados. Mas continuava a ter o privilégio de assistir à parte final daquele ritual mágico.
A mãe já não era tão jovem mas tinha ainda um fascínio que conseguia transmitir.
Adorava ver as suas mãos esguias, pousarem no pescoço alto, um colar de pérolas nacaradas com um brilho frio mas suave. Ajudava-a muitas vezes a apertar o fecho, uma pequena borboleta de ouro, cravejada de diamantes negros. O cabelo fulvo, era uma chama viva domada de vez em quando num elegante apanhado.
Quando a mãe saía aproveitava para o seu momento especial. Toda a sua, ainda curta vida, fora construída à volta daquele quarto, daqueles momentos e daquele espelho.
Lembra-se da primeira vez que se olhou nele, as mãos a tocarem o cabelo liso e negro, herdado do pai.

Num jeito meio temeroso, meio brincalhão, recordara-se da história, tantas vezes contada em criança e ironicamente olhando o espelho, perguntara:
- Espelho meu, diz-me se há alguém com maior beleza do que eu?
A resposta era-lhe dada pelo reflexo que a mãe parecia ter deixado no espelho.
Aproveitava então o tempo em que ninguém estava em casa, para vestir e despir as roupas perfumadas, cheirar cremes e pós, experimentar colares e lenços, pentear os cabelos com a escova larga e macia.
De vez em quando repetia para o espelho a pergunta fatal:
- Espelho meu, diz-me se há alguém com maior beleza do que eu?
Inevitavelmente a resposta não era o seu reflexo, mas outro, sempre presente mesmo quando não estava.
O tempo foi deslizando entre realidades e sonhos, privilegiando as primeiras e sendo carrasco dos segundos. Foi descobrindo no rosto daquela mulher a quem seguia os passos, uma ruga mais marcada, a pele menos firme e rosada, o cabelo mais baço, onde os brancos se escondiam sob a ilusão da tinta. Deixou de assistir àquele cerimonial que a mãe repetia diariamente. Já não sentia o mesmo fascínio e achava que tinha aprendido tudo. Na mãe via-se uma debilidade que se foi acentuando, obrigando-a, tal como agora, a passar temporadas no hospital.
No seu íntimo algo se regozijou pecaminosamente.
Desejou que os dias passassem rápidos, frenéticos, a atropelarem o tempo. Precisava que a idade reclamasse por fim os seus direitos.
Agora frequentava aquele quarto todos os dias, tomando-o como seu, faltando às aulas e fugindo de tudo aquilo que lhe tinham querido impingir sem se importarem com a sua opinião e com quem realmente sente que é.
Num espectáculo que lhe envaidecia o ego, vestia-se e despia-se posando para o enorme espelho.
Mas agora, à pergunta habitualmente feita, o reflexo mostrado é o seu. Cabelos negros deixados crescer, saltos altos vertiginosos, vestido justo e decotado, soutien almofadado a esconder ( por enquanto ) a falta de seios, meias negras nas pernas depiladas, boca pintada de vermelho e uma base compacta a esconder a barba incipiente, feita ao amanhecer.
Agora a mais bela é “ela”.

© Margarida Piloto Garcia.

Foto de © Veri Apriyatno



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