sábado, 16 de novembro de 2019

Poente outonal







Há um céu fulvo a comer a saudade
e os passos resistem a queimar-nos a dor.
Sobram palavras onde o sol expira
num lânguido suspiro no horizonte.
Enleio-me na serenidade das gaivotas
e no gozo do grito das pequenas vagas.

Não há olhares na sombra do caminho
e os murmúrios são incógnitos e tristes.

Na calma amarga e aparente
resta-me o som vago e distante
da que já foi a tua voz.

© Margarida Piloto Garcia 
in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A CAMILO PESSANHA- publicado por Temas Originais 2017


À poesia








É o teu som que oiço na brisa matinal

despertando epopeias na pele dos meus sentidos

Arrulha o pássaro no reverso de mim

a instigar palavras para quebrar e dançar em teclas.

Agora a fonética corre lasciva da mente aos dedos

metamorfoses por trás da retina, versos saciados

a beberem as células do pensamento em fusão.

A imaginação atropela-me o corpo em sons

que se fundem num impensável ou predestinado

poema, prosa , acto de amor eterno.

Mordo as palavras com os sons que despertam

mesmo que seja noite, ou o inverno se mascare de verão.

Os espasmos dos risos ou dos beijos

são versos gritados a escorraçar silêncios

que vagueiam durante o dia, espessos como nevoeiro.

No fim amo-os nos sons que crescem dentro de mim

No fim amo-te a ti, poesia.






© Margarida Piloto Garcia.


sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Ser






Ser água
e permitir que escorra
entre beijos desfeitos.
Ser vento
e perder a inocência
nas raízes desse cabelo.
Ser terra
e sentir-me inteira
como um pecado original.
Na dúvida ser tudo isso
como um desejo insano e prepotente.
Conjugar verbos no sabor da pele
e gritar necessidades, doces, salgadas,
por vezes amargas e rebeldes.
Ser mar e ser falésia
deixar-me navegar até que tu naufragues
e as gotas de sangue me apaziguem os sentidos.
Ser a memória apagada
a predadora do cansaço e da crueldade mal gasta.
Ser um anjo feroz a abocanhar a vida
numa seminua pequenez.
Ser a mudez da cama vazia.
Fosforescer no verão ou noutra estação qualquer
quando só me falta a tua
num vai e vem de anos ululantes.
Ser o alento enganoso
quando o tempo não tem vagar de existir.
Ser um velho tango marginal
um ritual intimo enroscado num poema.
Ser o aroma da flor acabada de colher
e o grito da manhã.
Ser, enfim, a esperança de sobreviver
a mais um recomeço.



© Margarida Piloto Garcia-in "PALAVRAS DE CRISTAL VOLUME VI"-publicado por MODOCROMIA EDITORA-2020


© Foto de Randall Hobbet - Tetyana

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Desistência





O que não compreendes
é que a lâmina desliza devagar.
Tu não entendes.
Ninguém o faz.
Mas a lâmina é isso mesmo
um corte suave e eficaz
um deslizar carmim
o esquecimento
a paz.

Podes lá chegar
dum modo ou outro.
De joelhos com um beijo inesperado
no silêncio de uma vida minada
ou a decifrar algoritmos de perigo.
Tudo pode ser mais fluido
com comprimidos brancos enredados
em líquido ambarino.

Mas a lâmina corta cerce a cauda de sereia
e desfaz o sonho em fiapos.
Afinal, o vermelho vai casar bem
com o amarelo das giestas.

© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO A JORGE DE SENA- publicado por TEMAS ORIGINAIS- 2019

© Foto de Pilar Les