segunda-feira, 27 de março de 2023

Feelings 3

 



Eu não quero negar
a pele, a ânsia, o veludo
o escorregar de manso
a febre insidiosa.
Mas o sim te um preço
e é na marca feroz
que o sinto e reconheço.

Margarida Piloto Garcia
Arte de Marci Mac Donald

Feelings 2



Pequeno 

mas intenso

é o teu nome

na minha boca


Margarida Piloto Garcia


Foto de Natalya Karavay


 

Feelings 1




De que serve escrever

se ninguém lê ?

De que servem as imagens

se ninguém vê ?

De que serve um corpo

cheio de sonhos ?

Maia vale ser nuvem

a chover nos teus olhos.


Margarida Piloto  Garcia


 

quarta-feira, 15 de março de 2023

Guarda-me







Guarda-me a parte
no bolso do casaco, na fronha da almofada
na pele morna do amanhecer
Guarda-me onde o cheiro das tardes
te invada os cabelos e se esconda nos teus braços
feitos algas.
Não me amargues o corpo, nem amoleças o cio
com palavras químicas e vazias
Guarda-me apenas onde o mundo mora
e respira, este desejo terrorista de ti.



Margarida Piloto Garcia



 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Lobotomia






Antes que a luz quebrasse

a translúcida vidraça

já era bela aos olhos dele.

Tão bela que a distância

entre o real e o imaginário

se fundia nas frestas de luz

e se recompunha despudorada

nas sombras de um velho cão.

Acordavas os sons das ervas

no quintal e guardavas os vincos

na almofada vazia.


Depois desmantelaste-me

como um velho relógio.

Agora a minha ausência

é uma tempestade e uma sede

que te consome e não entendes.

Devias ter pensado nisso

quando me envolveste de escuridão

e deixaste de correr para os meus braços.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Empréstimo

 





Já te emprestei os dedos

com os quais escrevia cartas de amor

e dedilhava lentamente os teus músculos

como se fossem argamassa de música

para construir cidadelas

não fosse a paixão fugir.

As minhas pernas também levaste

mas esqueceste-as embrulhadas noutra pele

ao ponto de eu não saber andar.

Numa sexta-feira emprestei-te os meus olhos

e eu fiquei sem saber onde estava a vida

e os pontos cardeais sangravam secretamente.

Embrulhei os cinco sentidos na esperança

de te fazer feliz, eu que nunca pensei que

a felicidade fosse tão pouca.

Quis enviar uma mensagem a um qualquer deus

mas já não tinha voz.

Agora, côncava no silêncio de mais uma noite

rasgo o vazio com uma navalha e grito:


"DEVOLVE-ME TODOS OS EMPRÉSTIMOS"!




Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



Arte fotográfica de Richard Davis


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Qualquer coisa





Qualquer coisa

o cheiro das laranjeiras

o poente entre nuvens

o incêndio no meu corpo

o animal ofegante na língua

a viagem secreta por fazer


e o meu dia dissolvido no teu nome


Qualquer coisa

as tangerinas nas mãos

as palavras escorregadias

a queda do coração ao sinal vermelho

a loucura que não me devolvem

a dor das chamas nos olhos


e o meu dia dissolvido no teu nome


Qualquer coisa

não chega

não silencia

não cura

o meu dia dissolvido no teu nome.


Resta-me a noite




Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



 

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Ouves?





Ouves?

São as hienas comprometidas

com a noite a rirem-se numa

contagem decrescente para o rasgar

das vidas onde cravam dentes ágeis.

Já nós seguimos apáticos e meio cegos

sem saber o que nos espera

nas ruas que não mudam de lugar.


Ouves?

É a música que nos invade os passos

e nos cala a boca farta de palavras do passado.

A febre quebra-nos os ossos

desfazendo a dança e o corpo esquece

as memórias das promessas feitas.


Ouves?

As hienas voltaram assim que

me largaste a mão mas o meu vestido

só morreu na boca das traças.




Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


Pintura de Clare Elsaesser


 

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Remendos





Nenhum remendo sutura a minha pele

nenhum anjo ampara a minha queda

nenhuma curva na estrada me esconde

de um lugar onde não cabes.


Os espelhos têm tantas faces

onde finjo morrer refletida em mil pedaços

e as portas não abrem um futuro

de que não tenho as chaves.


Falo comigo sempre que chegas tarde

ou mesmo se não vens e os olhos ardem

na inevitável passagem do tempo.

E volto a costurar os meus sussurros

presos na pele nesta manhã obscura.


O vento suão esmaga os lençóis

contra o meu corpo e eu digo-te

que estou farta deste manancial de auroras

e não posso esperar mais.




©️ Margarida Piloto Garcia.- in CONEXÕES ATLÂNTICAS VI-publicado por In-Finita 2022


Foto de Vivienne Mok

 

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Setembro



A contabilidade de Setembro

chega como a última tempestade de verão.

Negas-me a sede do esquecimento

enquanto as marés vivas se jogam na praia

e eu me preparo para o afeto amarfanhado

rasgado pelos ladrões de sonhos que me devoram

a vida.

Setembro tem esta febre que me consome

numa interminável e alucinante indiscrição.

Sinto que caminho no vazio

numa voracidade enigmática que me arrasta

entre algas e que já não sei ver.

As minhas mãos desenham linhas circulares

na areia fresca.

Sei que continuo a respirar mesmo neste

lugar incerto onde a metafísica do sangue

se imiscui na água salgada.


E depois detonas em tempo certo

o meu coração partido.


 © Margarida Piloto Garcia-in ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA"Entre o sono e o sonho"-Volume XIV


 

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Algumas vezes

 




- Responsabilidade de quê?
- A responsabilidade de ter olhos quando os outros perderam.


José Saramago






Algumas vezes pouco sabes de mim.

Escutas a insensatez do que dizes e

o sotaque das nuvens é ligeiramente azul.

Tu não vês que os desconsolos das derrotas

já nem se calam no plasma dos lençóis

mas adormeces numa cegueira contínua

que não é coisa alguma.

Calar-me. Esconder o canto na garganta

aos soluços, renegando as linhas débeis

do teu perfil devorado em tantos incêndios.

Mas a tua cegueira move-se na escuridão

e as palavras nascem e morrem no mesmo dia

em que os espaços vazios não precisam

de ordem ou ponto de partida.

Não te digo nada porque as palavras podem

tropeçar nos adereços de uma vida atormentada

mas esta pele que é sinónimo de sangue

antes de ir embora

ainda te deseja algumas vezes.




Margarida Piloto Garcia in- Tributo a Agustina e Saramago. Publicado por Temas Originais-2022 



Foto de Kultur Tava


domingo, 10 de julho de 2022

Espera





                                            Grassa a fome nas comissuras dos lábios

e na língua fala a semente do vício.

No entanto teimo em ir à boleia das vagas

enquanto o grito espreita num botão de camisa

desabotoado em rota encapelada de arrepios

na cicatriz nua dos olhos de uma fúria ausente

nas aspas de uma vida feita de raízes imóveis

a crescerem para dentro vermelhos naufragados.

E no poema cala-se a dor , a raiva, a luta

faz-se oco este lugar de silabas desperto

eternamente ansioso, febril e nunca saciado

na espera muda do que lhe pertence.




Margarida Piloto Garcia



 

sábado, 21 de maio de 2022

Não







 


Não, não vou dizer guerra

falar de guerra, encher a boca

com a palavra guerra.

Eliminei-a de todos os dicionários

de todos os livros, de todas as enciclopédias.

Ostracizei a palavra em todas as línguas

e dialetos para que ninguém a pronuncie

a leia, a desenhe ou sequer a sonhe.

Não a fechei numa caixa, não a atirei ao mar

nem a mandei para o espaço.

Simplesmente fi-la desaparecer.

Como? Não me perguntem. Desapareceu

e o modo como o fiz fugiu-me da memória.


Agora as crianças não sabem o que é

os homens não a conseguem criar

e a imaginação libertou outras palavras

quentes e suaves e dentro de todos

numa teimosia frágil o amor renasceu.


Não, não vou negar como o passado

me tentou enganar, mas esta imensa escuridão

deixou-nos de mão dada e a alvorada já

não tem arrependimentos inesperados.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Memória





Há dias em que não me lembro de nada

sigo uma rota de crateras extintas

e vou construindo estações de pele e sal.

Alimento parábolas para fintar as horas

e peneirar as dúvidas cinzentas.

Lá fora a vida espera em gestos inventados

seguindo uma lei sálica que não sei quebrar.

As palavras não frutificam

no deserto da memória.

Este não é o meu mar

este não é o meu leito

esta não é por certo a minha vida.

Muito antes de temer os dias

nos solavancos da terra a prender os pés

muito aquém das gaiolas que se tornam

presenças diárias, entre as esquinas do sol

fui aprendendo a segurar as quedas.

As mágoas disfarçam-se num arroz doce

polvilhado de afetos gritantes.


Há que dizer que as mouras encantadas

são sempre desfeitas pelo destino.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



Foto de Monia Merlo


 

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Preguiça





Sou o sangue que te alimenta

a raiva que te ruge o entardecer

a ave que te debica os ossos

a cama vazia que te esqueceu.


Sou o adereço de uma peça teatral

o jogo entre a chuva e o sol

o ranger do sonho na distância

a escuridão sedenta de loucura.


Sou a espada e a flecha

um dia incompleto e sem fim.

Sou o espanto que te cala a solidão

e o sumo que te explode nos lábios.


Sou a tua rua palmilhada

e as minhas mãos pequenas agarram

os desesperos incómodos

quando a vida se agarra às urgências.


Sou tudo isso mas a preguiça

não me deixa mudar de rumo

e ata-me as lágrimas, a língua e os desejos.


Talvez a possa esvaziar de sangue e gritar.




Margarida Piloto Garcia in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



segunda-feira, 18 de abril de 2022

Neblina








Às vezes ainda espero ver-te o vulto

numa qualquer manhã de neblina.

O sol esconde-se no dia mascarado

e ainda há rumores de estrelas

nas palavras que não dizes.

Tenho um cheiro a laranjas nas mãos

e o meu corpo não sabe o que o espera.

Se calhar não sabemos mesmo nada

e na pureza da neblina somos cegos

a arquitetar vazios com vogais redondas.

Este teu vulto é um particípio passado

uma ferida virtual que vai desabar.

O amor calou-se e agora somos também

surdos e mudos, vazios e resignados

a pisarmos esperanças perdidas.

Vestimo-nos com arame e farpas

a esconder um coração morto

e o intolerável peso do corpo.


Amanhã volto para ver se há neblina

ou se o teu vulto adormeceu para sempre

nas ruínas da memória.



Margarida Piloto -GarciainOPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


 

Desejos





Canta-me como se fosses um rouxinol

desvendando na tarde o eterno mistério

Dança-me em passos de fogo

num tango gemido e predador.

Colhe em mim o abraço lânguido

que te despe a pele e a cobiça.

Prende o meu beijo na tua boca nua

e arrasta as palavras nas papilas

num degustar febril.



Mas depois de me cantares e dançares

lavra-me com a tua língua peregrina

impúdica mas inocente.

Saliva-me as rotas que te conduzem

ao destino traçado.

Morde a eriçada penugem

banhada em rios de desejo.

Desagua em mim como se fosses cascata

como se fosses a criação do universo.



Usa dedos calibrados e perfeitos

para me desvendares.

Colhe na boca o pólen que semeiam

e deixa-me fazer de ti

um deus ou um escravo não importa.

Avança em mim como um conquistador.

Mas quando te desfizeres em ondas

despedaçadas e rítmicas

apenas gritarás o delírio do meu nome.




Margarida Piloto Garcia


Foto de Sasha van der Werf










sábado, 2 de abril de 2022

Sedução



                                                               Espera-me logo.

Levo a seda vermelha

a escorregar-te nas mãos.

Levo os olhos impúdicos

grávidos do vício do teu corpo.

Podes vendá-los e arrepiar-me a pele

com dedos eruditos mas selvagens.

Cega-me as mãos com nós de veludo

e depois, louco e voraz,

suga com a boca a raíz do prazer líquido

a bordar-me a pele em gotas translúcidas.

Submete-me julgando-te poderoso e vencedor.

Mas não te enganes! Entre os meus e os teus gritos

só tu és o cativo.



Margarida Piloto Garcia



 

Eu sei




Eu vou morrer antes de ti

é o que diz o calendário e o sangue nas veias

caçador das últimas batidas

ou os ossos frágeis a lamberem o túrgido sol.

É esse o caminho

e o que está escrito nas rugas desarmadas

e inocentes, esgravatadas num tempo sem pudor

Eu vou morrer antes de ti

e isso não me diz a lua nem os astros

nem sequer o ar que sucumbe a cada respiração

Eu vou e quero que assim seja

mas fica tanto por dizer na teima cega de calar

na boca de pedra que só treme à tua ausência

ou na revolta que cabe no intervalo dos sentidos

Sei-o porque a vida se gasta aliviada de milagres

incontida como se a bebesse aos tragos

a fugir de ser domesticada

Eu sei que vou morrer antes de ti

mas é da tua solidão que tenho medo.



Margarida Piloto Garcia


 

quinta-feira, 17 de março de 2022

O princípio e o fim






Chegou o fim e tu sabes

sabes que morreste e nem deste por isso.

Talvez o fim e o princípio

não façam assim tanta diferença

porque às vezes a dor e as lágrimas

são um fator comum a mostrar que temos pressa.

Não importa se uma bala nos ilumina

se um comboio nos leva de viagem

ou se uma faca nos lavra ou uma cama

nos enterra no silêncio.

Chega o tempo em que as mãos já não abraçam

e os beijos ficam esquecidos nas bocas.

A vida atirou-te de bruços para o abismo

e as palavras afogaram-se no que não disseste.

Não há fórmulas mágicas para sobreviver

a não ser as que deixas na inquietação de alguns.

Às vezes a morte é um carrasco distraído

que te leva quando começas a aprender

mesmo que seja um passo para a loucura.

Aqui não acontece nada a não ser

termos o mesmo destino.


O problema é que estás morta

mas continuas teimosamente a querer viver.



Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022



 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Anos

 









Presente, passado ou futuro

um emaranhado sem respeito

uma fera a comer-nos

ou uma impalpável fome

como uma dor antiga que não morre.

A nossa indiscreta fragilidade

precisa de um manual de sobrevivência.

É nele que te apoias

é nele que tens dez anos e todos os sonhos

ou quinze e conquistas a sede infinita.

Em cada ano somos apenas um inquilino

à espera de um despejo

ou um argumento que não é levado à cena.

O nosso coração é dado como entrada

no negócio da vida e raras vezes

somos reembolsados.

Dos anos vão ficando as cicatrizes

as veias azuis, as rugas da indiferença

os deslizes absurdos e a ingratidão

que atravessa o tempo até rasgar a pele.


Os anos são propícios a crueldades

e talvez eu me vá embora

sem que ninguém dê por isso. 




Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022



Foto de Alicja Posluszna