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sábado, 25 de janeiro de 2025

Vivace




Vivace


Um galope desenfreado morde o chão

e mesmo esta vocação

para o estremecimento, apesar de parecer

lenta e acomodada, não encobre

a alucinante viagem para o vazio.

Enjeito os sons , até que todas as coisas

sejam mudas e se diluam no ar.


Não tenho senão esta vontade

de sentir a febre que me beija os flancos

enquanto a frágil música, rápida e palpitante

se insinua e tenta rasgar as rugas do destino.


Na mesa o poema esquecido já não é o mesmo

transfigurou-se sob a gota de café

tal como a fotografia que deixaste

e desapareceu sob outros destroços.

A minha pele pulsa num rumor

e a minha boca bebe o sol embriagada.


Meu é apenas o instante e a certeza da morte


Margarida Piloto  Garcia

Foto de Mira Nedyalcova

 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Lobotomia






Antes que a luz quebrasse

a translúcida vidraça

já era bela aos olhos dele.

Tão bela que a distância

entre o real e o imaginário

se fundia nas frestas de luz

e se recompunha despudorada

nas sombras de um velho cão.

Acordavas os sons das ervas

no quintal e guardavas os vincos

na almofada vazia.


Depois desmantelaste-me

como um velho relógio.

Agora a minha ausência

é uma tempestade e uma sede

que te consome e não entendes.

Devias ter pensado nisso

quando me envolveste de escuridão

e deixaste de correr para os meus braços.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



 

quinta-feira, 17 de março de 2022

O princípio e o fim






Chegou o fim e tu sabes

sabes que morreste e nem deste por isso.

Talvez o fim e o princípio

não façam assim tanta diferença

porque às vezes a dor e as lágrimas

são um fator comum a mostrar que temos pressa.

Não importa se uma bala nos ilumina

se um comboio nos leva de viagem

ou se uma faca nos lavra ou uma cama

nos enterra no silêncio.

Chega o tempo em que as mãos já não abraçam

e os beijos ficam esquecidos nas bocas.

A vida atirou-te de bruços para o abismo

e as palavras afogaram-se no que não disseste.

Não há fórmulas mágicas para sobreviver

a não ser as que deixas na inquietação de alguns.

Às vezes a morte é um carrasco distraído

que te leva quando começas a aprender

mesmo que seja um passo para a loucura.

Aqui não acontece nada a não ser

termos o mesmo destino.


O problema é que estás morta

mas continuas teimosamente a querer viver.



Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022



 

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Um minuto ou alguns segundos





Breve o dia, breve o ano, breve tudo.

Não tarda nada sermos.


Ricardo Reis in “Odes”

Heterónimo de Fernando Pessoa



Um minuto ou alguns segundos


No tempo em que eu era feliz as manhãs

tinham cheiro a sol e as árvores

em frente da janela falavam de outros lugares

Agora a lembrança debruça-se devagar

hesitante nos poucos segundos de atração

até se deixar cair apressadamente

como se tivesse chegado tarde.

Num último espaço para o fôlego

encetas a descida e experimentas o voo

que te dilata as veias. Soltas os cabelos

e deslizas no ar morno enquanto inventas verbos

e pressentes os sonhos impossíveis.

Um silêncio escuro enche-te os olhos

e as vidas dos outros abrem-se sem pudor

enquanto vais caindo ao longo das janelas.

Sem arrependimentos inesperados

o voo é uma anestesia, dos dias, dos meses

e dos anos. No início e no fim, as semanas

só têm segundas-feiras.


Na queda iminente da boneca partida

não há contadores de estórias

e o vento apaga-te o rasto.



© Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022


 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Quando tudo acaba






                                                              “ Ser adulto é quase impossível no mundo

só imberbe.”


Rui Costa-Breve Ensaio Sobre a Potência





Quando tudo acaba


Os homens pardos comem a luz

e vêm de um sítio que não nos é nada.

Estendem a mão, mas não o sorriso

ou têm só dentes e rugas para nos tirar o fôlego.


Crescem como ervas daninhas

sem palavras escritas, mas em overdoses de bytes.

Por muito que os pardais nos cantem

e as flores nos alaguem de aromas

os homens pardos só trazem escuridão e medo

e ululam com o vento a ditar-nos finais.


Tu dizias

que ninguém virá

nem o frio insuportável

nem o amor para sempre”.

Eu digo que tu vens porque trazes as cores

dos sonhos que não são finitos.


Ainda não sei quando ou como tudo acaba.

Agora que te sentas sozinho, talvez me possas ensinar.




© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO AO MEU POETA- publicado por Temas Originais











 

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Requiem




Ele disse que sim.
Ela disse também.
Apenas um jogo
um erotismo subtil
fugindo à rotina, às frustrações.
Eles sentiram pele, carícia, beijo.
Amaram-se na obscuridade dos desejos
e ele disse que não
nada de amarras, paixões.
Ela disse também.
Ela mentiu.
O coração rebentava
pulava, os olhos coruscantes
a boca tremida, a pele palpitante.
Mas ela disse que não.
Dias depois
ele disse que sim.
Ela disse rasgando a couraça, que sim e sim também.
Ele não soube explicar
que o jogo falhara
que a paixão dominava e o feria.
Amaram-se sempre em vagas alterosas
e trocaram ternuras, anseios e receios.
Confessaram-se no altar sagrado
da chama que os unia.
Não eram beijos
porque uma boca só
já os unia
e em corpos suados ele cantava-lhe
êxtases sem conta.
Mais tarde
Ele disse que sim.
Ela disse também.
Rugiram gravemente os pensamentos
do...e agora?
Deveriam fugir. largar as mãos
perder o tesouro encontrado?
Mas eram um só e as lágrimas rolavam.
E o amor fê-los desaparecer
numa espiral hipnótica
que domou o tempo.
Perdidos noutra dimensão
os corpos suados, amados,
lambidos, amassados,
as loucuras perpretadas e vividas
sem sombras de futuro inexistente.
Raios filtrados na janela
tornavam-na mais bela.
O cheiro da pele dela, brilhava
no tónus da pele dele.
E os olhos brocavam o peito sem piedade
e o amor era uma bigorna martelada.
Um dia ele disse que não.
Ela disse talvez, na sombra do engano.
Ele seguiu em frente.
Ela virou para trás.
A paixão e o amor foram guardados
no baú do nunca e enterrados.
Os nãos e os sims
o jogo viciado
foram coroa de flores em campa rasa.
Sobraram de mãos dadas dois fantasmas
que se amam sobre ela
em noites de lua cheia.


Margarida Piloto Garcia




segunda-feira, 6 de abril de 2009

Epitáfio





Sobre o caixão dos sonhos
deitas simples flores.
Em breve a campa será rasa
e tudo apodrecerá na escuridão.
O meu fantasma
afoga-se em lágrimas sangrentas
pintadas em quadros de Pollock
cantadas em melodias de Caruso
e adormecidas nas palavras de Andion.
Conto cada ruga ao pormenor
cada ano passado
cada minuto vivido.
O sol, há muito que se pôs neste horizonte,
onde dancei tangos no cemitério da vida.

O meu querer não tem fim
mas as palavras são cruzes
e os sentimentos afundam-se no pranto.
Não sei se as coisas têm um porquê
mas hoje, sou apenas um anjo caído
uma borboleta sem asas.

É funda e negra
esta cova sem pedra tumular.


Margarida Piloto Garcia





domingo, 1 de março de 2009

Delírio





 “Nós, as mulheres, o que nos faz amar um homem é aparentá-lo com tudo o que amamos-o tempo da crise, da puberdade, da gestação, do enigma; os primeiros rostos, as primeiras carícias, os primeiros medos.”

Agustina Bessa-Luis




Esqueço o teu número num copo.

Meio cheio

meio vazio

meio cheio.

Tento...tonta, vestir a desnudada incompreensão

e atravesso a fronteira entre o real e o imaginário.

Esqueço a tua voz que me hipnotiza

rabisco frases idiotas, engulo ácidos de desespero

ansiando pela tão desejada anestesia.

Esqueço os teus beijos

suaves, carentes, tímidos

ou devoradores e suculentos.

Embarco num turbilhão

giro num carrossel que me nauseia

numa montanha russa de sombras escuras.


Retorço-me na minha carapaça,

inseto inútil e assustado na palma da tua mão!

Esmagas-me devagar com toda a crueldade,

de quem não entende, de quem me teme.


Esqueço a tua escrita correndo-me no sangue,

fluído vital

parte de mim.

Poesia do meio da manhã

quando a emergência do sol nos desespera

e os zeros da existência nos confrontam.

Esqueço tudo, o antes, o durante e o depois.

Rasgo com olhos vagos o copo...

Meio cheio

meio vazio

meio cheio.

A vida escoa-se em cada gota de álcool, a sangue frio.


O ar à minha volta é um garrote

um animal que vai roendo a presa

e prefiro não confrontar os cubos de gelo

diluindo-se na vaga de calor que tu não sentes.


Esqueço a perceção do inevitável.

Não consigo evitar o rasgar de entranhas

numa ilógica e fascinante destruição,

diluída num conteúdo inútil de tão ferida.

E dói-me o teu perfume à esquerda

do meu braço como uma tempestade de verão.


O copo continua lá

meio cheio

meio vazio

meio cheio.

Deixo de acreditar que o sol nasceu num novo dia.


O inseto que sou ainda estremece,

tentando lutar num instinto básico e primário.

Mas a dor que tu provocas aperta mais o cerco,

fina, fria, metálica.


Já nem reparo no copo.

Meio cheio

meio vazio

meio cheio.

Esqueço-me de viver...



Margarida Piloto Garcia in- Tributo a Agustina e Saramago. Publicado por Temas Originais-2022 




sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Estilhaços








Não consigo apanhar os estilhaços da tua ausência. Os meus sonhos rasgam cada centímetro da minha pele ferida. A realidade é uma faca afiada cortando e recortando espirais de dor num corpo que se quer suado. Espasmódicos requebros percorrem cada gota de suor, vertida numa manhâ eternamente recordada. Os lábios secam sem o beijo e recolhem a frivolidade de uma lágrima que teima em cair. Por mais que queira, sou subvertida pelos acordes saídos da tua viola e sinto esse gosto a loucura que me divide entre a vida e a morte.
Queria tanto apanhar esses estilhaços! Colá-los numa cópia insana do que foi! Mas olho-os e sinto-me vazia. A minha alma não passa de um rascunho amarrotado, no qual mal se notam os traços, de tão usada. Dobro as esquinas da vida e respiro os eflúvios de uma qualquer droga que amorfine. Multiplico, divido, somo, elevo a uma potência difícil de calcular, este vórtice que me domina. Mas quando mergulho nos teus escritos e na memória falada de um mar reflectido nos teus olhos, a minha vontade é uma folha caída ao sabor do vento acutilante.
Não sei unir estilhaços porque não deviam existir estilhaços .
Que trilho não pisei?
Que segredos não soube desvendar?
Que imensidão de mim não foi suficiente?
Como funciona um grão de felicidade?
Um grão pequeno, uma migalha, um sopro do refexo sonhado e sentido. Existe um nó que se aperta, uma medusa que destila veneno, minando a minha consciência e transvazando uma agonia para um eu vazio. Perceber é um exercício de quê?
Que traço deve ser desenhado, que nota deve ser tocada, que palavra cria o milagre do acontecer? Amarfanho os cantos da vida num envelope velho, onde moram fotografias que não reconheço.
Não quero estilhaços...porque era tão inteiro esse meu querer!




Margarida Piloto Garcia

Web-Art de Yolanda Botelho