quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Um minuto ou alguns segundos





Breve o dia, breve o ano, breve tudo.

Não tarda nada sermos.


Ricardo Reis in “Odes”

Heterónimo de Fernando Pessoa



Um minuto ou alguns segundos


No tempo em que eu era feliz as manhãs

tinham cheiro a sol e as árvores

em frente da janela falavam de outros lugares

Agora a lembrança debruça-se devagar

hesitante nos poucos segundos de atração

até se deixar cair apressadamente

como se tivesse chegado tarde.

Num último espaço para o fôlego

encetas a descida e experimentas o voo

que te dilata as veias. Soltas os cabelos

e deslizas no ar morno enquanto inventas verbos

e pressentes os sonhos impossíveis.

Um silêncio escuro enche-te os olhos

e as vidas dos outros abrem-se sem pudor

enquanto vais caindo ao longo das janelas.

Sem arrependimentos inesperados

o voo é uma anestesia, dos dias, dos meses

e dos anos. No início e no fim, as semanas

só têm segundas-feiras.


Na queda iminente da boneca partida

não há contadores de estórias

e o vento apaga-te o rasto.



© Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022


 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Quando tudo acaba






                                                              “ Ser adulto é quase impossível no mundo

só imberbe.”


Rui Costa-Breve Ensaio Sobre a Potência





Quando tudo acaba


Os homens pardos comem a luz

e vêm de um sítio que não nos é nada.

Estendem a mão, mas não o sorriso

ou têm só dentes e rugas para nos tirar o fôlego.


Crescem como ervas daninhas

sem palavras escritas, mas em overdoses de bytes.

Por muito que os pardais nos cantem

e as flores nos alaguem de aromas

os homens pardos só trazem escuridão e medo

e ululam com o vento a ditar-nos finais.


Tu dizias

que ninguém virá

nem o frio insuportável

nem o amor para sempre”.

Eu digo que tu vens porque trazes as cores

dos sonhos que não são finitos.


Ainda não sei quando ou como tudo acaba.

Agora que te sentas sozinho, talvez me possas ensinar.




© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO AO MEU POETA- publicado por Temas Originais











 

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Da inutilidade das palavras



 

                                                        “ Escrevo, decerto, por qualquer

                                    razão inútil que não vais nunca entender”


                                    Rui Costa- Mike Tyson para principiantes




Da inutilidade das palavras


Dizer o porquê de certas coisas

afigura-se-me inútil, tal como comer ou respirar.

Já amar é outra coisa. Não sei mesmo se tal existe

ou se inventámos o verbo e o substantivo

mas é uma febre que não queremos curar.

Será que há quem nos salve ou subimos sós

todas as encostas e galgamos precipícios

como super heróis?

Temos fome de tudo. Sugamos como vampiros

as memórias, os sonhos, os pensamentos.

Nas madrugadas arpoamos as manhãs

na esperança de galoparmos o mundo e esperamos.


Não existem deuses no céu cada vez mais irrespirável.

Tudo o que nos resta está para além do infinito

e nem esse a ciência nos garante.

Vazamos com a maré, ao sabor da lua.

São inúteis as palavras, assim descaroçadas.



© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO AO MEU POETA- publicado por Temas Originais








segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Coisas que sei

 






                                                              “ Não, nem todo o limão é amarelo quando

                                       A mão de alguém o toca e humaniza...”


                                     Rui Costa-O Pequeno-Almoço de Carla Bruni





Coisas que sei


Não são muitas as coisas que sei

mas queria saber todas.

Às vezes debato-me com esta fome

e complico a vida.

Cultivo o silêncio, uma e outra vez

porque as palavras desgastam e eu tenho

esta raiva tola a anunciar a morte.

As coisas passam assim: as árvores ardem

os animais morrem, os homens fazem a guerra.

O comer sobre a mesa não tem acenos

e o medo invade os lençóis.

Não há caminhos mágicos, nem rituais certos.

A incerteza é mesmo importante para seguir em frente.

Muitas das feridas não saram, nem com dias serenos

ou ainda que fosse nómada de uma viagem incerta.

O avesso de tudo é o que temos.


Eu continuo a querer saber coisas, mesmo que desnecessárias..





© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO AO MEU POETA- publicado por Temas Originais

Foto de Ziqian Liu







quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Ao Rui Costa

 






                                                                              “Há pessoas que amam

                                              Com os dedos todos sobre a mesa...”


                                   Rui Costa -A nuvem prateada das pessoas graves.




Ao Rui Costa


Acredito poeta, que todos somos cúmplices

do teu mergulho na morte.

Todos os homens e mulheres que te corroeram

os poemas, a areia da praia, as maçãs, o pão fervente.

É na memória da pele que os teus versos cheiram a laranja

mas se transmutam em nuvens prateadas ou se fendem

em matizes fermentadas.

Tu só te envolves nas guitarras da Mana Calórica

e desprendes-te sem sombras de todas as amarras.

Desconcertante o teu desassossego

e as tuas torrenciais palavras.

Ali, no bar em Miragaia, sem vaidades e transparente

juncaste os poemas de lutas metafóricas

e soubeste ser frágil e desafiador.

Com os dedos todos escreveste promessas e solidão.


Um poeta assim, terá sempre o amparo da sombra da ponte

mesmo que não tenha sido preciso voar.




© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO AO MEU POETA- publicado por Temas Originais 2021

sábado, 9 de outubro de 2021

Amanhã








Fico

no rebentar salgado e sufocante

na onda que cresce emaranhada

na pele que arrasta as tuas mãos



Desenho

a nudez das palavras

a crescerem vulcânicas na raiva

ferozes como giestas bravas



Sinto

a alquimia secreta dos amores

o corpo a parir sol e chuva

feita das lágrimas vorazes



Morro

no frenesim de acontecer

hoje de novo, mais e mais

porque o amanhã é só uma ilusão




Margarida Piloto Garcia



Foto de Navin Vatsa



domingo, 3 de outubro de 2021

Jane Campion





JANE CAMPION


Esta estranha paixão, agita-me os cabelos

como um prodígio de luz intensa

roça-me as pernas como as folhas do chão

e afia-me os seios com as notas lentas do piano.

Há que bebê-la em pequenos goles

não vá fazer ferver a pele e sucumbir

ao rasgar do corpo, mesmo envolto em veludo.

As notas soltam-se sobre o mar

imensas e transparentes

ou rasgadas e em fúria.

O mais difícil é suster na boca

o poema silencioso. Só as mãos se agitam

e me pedem que vá, que deixe escorrer

um rasto de fogo e me consuma.


E pouco a pouco reaprendo

o caminho do desejo

e esqueço que a felicidade é fugaz.





Margarida Piloto Garcia in-LETRAS EM MARCHA- publicado por Calçada das Letras-2021








 

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Lars Von Trier






LARS VON TRIER


É preciso compor o silêncio

com esta dor satânica a afundar-se

no mar imenso deste inferno sem ti.


Há mãos e línguas que me submergem

e eu só sinto o coração a desgarrar

mesmo que pernas, umbigos e peles

me trespassem e cubram.


Faço e desfaço a noite em ondas de paixão

que não é a minha.

Essa, jaz debaixo de uma pedra

arremessada num dia de verão.


E agora…

como levantar-me do chão

e não desistir

se os olhos são carrascos

e não importa o que se escreva

quando todas as letras são escarlates

e tu não entendes

que a mudança é por ti.




Margarida Piloto Garcia in-LETRAS EM MARCHA- publicado por Calçada das Letras-2021

 

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Akira Kurosawa




                                                                 AKIRA KUROSAWA


Quando a pulsação rebenta e o sangue jorra

as mulheres acolhem em si os temporais.

Abrem os braços aos bombardeios

para acolherem os filhos.

Desfazem-se em luzes e estilhaços

no meio de lânguidas canções e

respiram as cinzas das batalhas.

Sobrevivem às ausências

mesmo com a alma negra e o punhal pronto

para um qualquer ritual de seppuku.

São guerreiras que não estão na sombra

seja qual for o terreno da batalha.

Não podem hesitar sob pena de matar o sonho

e não haver futuro para amar.

Quando se despedem levam cardos na alma

e o medo dos dias crucificados.

Por vezes, como os grandes poemas

ficam na História.

Mas acreditem, elas só querem ser felizes!




Margarida Piloto Garcia in-LETRAS EM MARCHA- publicado por Calçada das Letras-2021



 

sábado, 11 de setembro de 2021

Claude Lelouch







CLAUDE LELOUCH


Na dúvida que tudo isto seja um sonho

dancemos em plena agonia de prazer

corramos ao longo de qualquer coisa

que não seja zero, que não nos torne

avaros à ternura e à invenção do amor.



Fujamos descalços, descubramos a vida

em enlaces e verbos novos, mesmo que

já nos tenham dado ou dito.

Troquemos as peles, beijemos com dentes.


Se a minha voz tiver o som de uma sereia

rende-te hoje, porque amanhã posso

não ser feliz e estar morta como se faz nos filmes.


Se eu fosse a ti

apertava-me de novo entre os teus braços.




Margarida Piloto Garcia in-LETRAS EM MARCHA- publicado por Calçada das Letras-2021











 

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Anthony Minghella






"O cinema é um modo divino de contar a vida”

Federico Fellini




ANTHONY MINGHELLA


Nasceu o dia e as sombras na almofada

ganharam o espaço de um fantasma.

Mesmo que se acenda o fogo, as feridas

roem esta tempestade de verão.

Corro atrás da tua ausência e o passado

beija-me com facilidade e paixão.


Nasceu o dia e o amor antigo açoita-me

com o negro das pupilas e o vestido

abre-se ao descuido na areia.

Não importam os ruídos à volta.

Tudo é deserto menos nós.


Nasceu o dia e a boca sem beijos

enche-se de fúria e morde a tua sombra.

As memórias não fazem sentido

quando a escuridão é tudo aquilo

que acolho e aperto nos meus braços.




Margarida Piloto Garcia in-LETRAS EM MARCHA- publicado por Calçada das Letras-2021


 

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Terra




TERRA


Piso a terra húmida do orvalho

aspiro o perfume acre da manhã

e colho a laranja, mordo a maçã.

Pés descalços, lanço as sementes

espero-lhes o vicejar, o fruir,

como se espera um filho.

Ergo os braços ao sol

numa curva sem princípio e fim.

Na vertigem das papoilas

esqueço o que não é importante.


O corpo sabe do que a terra fala

da sua língua, das mãos revoltas,

dos animais, do trovão interno,

do milagre das manhãs.

Debaixo de uma laranjeira

aprendemos todos os impossíveis

mesmo que doam.

As cidades são de pedra e rasgam-nos.







Se fosse possível viver de um quase nada, bastavam os 4 elementos.




Margarida Piloto Garciain-OPUS-4-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2021



Foto de Armindo Ferreira

Água





ÁGUA


É ali que fica:

no fio condutor que a leva

das ondas salgadas ao curso dos rios.

Dos mares em que nunca mergulhou

retém o sonho emprestado,

tal como dos lagos escoceses frios e nublados.

Já os rios têm demasiadas pontes

que só a ligam ao passado.

Correm com intenção, furiosos ou calmos

num último destino, como a morte.


A água é o apelo imutável

a rota dos naufrágios da vida

a adição que lhe entra nas veias.

Os cabelos molhados são serpentes marinhas

ao redor de uma sereia desiludida.

Os cardumes anónimos bordam carícias

numa distopia íngreme e imaginativa.


Da água nasce uma danação

uma súplica pela verdade.

Parte dela repousará um dia nesse leito.


São os regressos ao princípio

que regem todos os finais.




Margarida Piloto Garciain-OPUS-4-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2021








segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Ar





AR

Os pombos invadem as janelas

cheias dos vultos tristes das mulheres.

Elas exibem exíguas roupas já estafadas

mesmo que ainda brilhem rastos

da antiga sedução.

O vento abre-lhes as narinas

com o cheiro dos frutos caídos

e os pensamentos correm pelo ar

mordidos

pungentes

impacientes como as formas dos corpos.

Sedadas pelos sons dos próprios gritos

as mulheres nas janelas despedaçam-se

e são insanamente levadas pelo ar.

Alongam-se no horizonte

na tinta roxa dos poentes


É no ar que a voz é solta

como uma lágrima de dor.




Margarida Piloto Garcia in-OPUS-4-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2021




Pintura de Vicente Romero Redondo


Fogo





      “Quatro raízes de todas as coisas: Fogo, ar, água e terra.”

Empédocles





FOGO


Está em ti o que procuras.

Preso na garganta, debaixo da língua

na solidão pasmada do corpo

na selva humana ébria e errante

onde te abrigas das incertezas.


Está em ti o fogo dos deuses

mesmo quando imploras

que se dissipe ou te consuma.

Já não há espaço nos lábios, nem

vagas impertinentes a desenharem

linhas e círculos ululantes.

O relógio está pronto para a morte

dizem os deuses extintos.


Mas vem o fogo e calibra-te

as promessas.

Invisível como um sonho

pinta-te o ventre de amarelo-açafrão

e enche-te os poros de vermelho-escarlate.


É o fogo que te transmuta

e te permite dissolver em lava

a raiz do medo.

 



Margarida Piloto Garciain-OPUS-4-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2021