segunda-feira, 18 de abril de 2022

Neblina








Às vezes ainda espero ver-te o vulto

numa qualquer manhã de neblina.

O sol esconde-se no dia mascarado

e ainda há rumores de estrelas

nas palavras que não dizes.

Tenho um cheiro a laranjas nas mãos

e o meu corpo não sabe o que o espera.

Se calhar não sabemos mesmo nada

e na pureza da neblina somos cegos

a arquitetar vazios com vogais redondas.

Este teu vulto é um particípio passado

uma ferida virtual que vai desabar.

O amor calou-se e agora somos também

surdos e mudos, vazios e resignados

a pisarmos esperanças perdidas.

Vestimo-nos com arame e farpas

a esconder um coração morto

e o intolerável peso do corpo.


Amanhã volto para ver se há neblina

ou se o teu vulto adormeceu para sempre

nas ruínas da memória.



Margarida Piloto -GarciainOPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


 

Desejos





Canta-me como se fosses um rouxinol

desvendando na tarde o eterno mistério

Dança-me em passos de fogo

num tango gemido e predador.

Colhe em mim o abraço lânguido

que te despe a pele e a cobiça.

Prende o meu beijo na tua boca nua

e arrasta as palavras nas papilas

num degustar febril.



Mas depois de me cantares e dançares

lavra-me com a tua língua peregrina

impúdica mas inocente.

Saliva-me as rotas que te conduzem

ao destino traçado.

Morde a eriçada penugem

banhada em rios de desejo.

Desagua em mim como se fosses cascata

como se fosses a criação do universo.



Usa dedos calibrados e perfeitos

para me desvendares.

Colhe na boca o pólen que semeiam

e deixa-me fazer de ti

um deus ou um escravo não importa.

Avança em mim como um conquistador.

Mas quando te desfizeres em ondas

despedaçadas e rítmicas

apenas gritarás o delírio do meu nome.




Margarida Piloto Garcia


Foto de Sasha van der Werf










sábado, 2 de abril de 2022

Sedução



                                                               Espera-me logo.

Levo a seda vermelha

a escorregar-te nas mãos.

Levo os olhos impúdicos

grávidos do vício do teu corpo.

Podes vendá-los e arrepiar-me a pele

com dedos eruditos mas selvagens.

Cega-me as mãos com nós de veludo

e depois, louco e voraz,

suga com a boca a raíz do prazer líquido

a bordar-me a pele em gotas translúcidas.

Submete-me julgando-te poderoso e vencedor.

Mas não te enganes! Entre os meus e os teus gritos

só tu és o cativo.



Margarida Piloto Garcia



 

Eu sei




Eu vou morrer antes de ti

é o que diz o calendário e o sangue nas veias

caçador das últimas batidas

ou os ossos frágeis a lamberem o túrgido sol.

É esse o caminho

e o que está escrito nas rugas desarmadas

e inocentes, esgravatadas num tempo sem pudor

Eu vou morrer antes de ti

e isso não me diz a lua nem os astros

nem sequer o ar que sucumbe a cada respiração

Eu vou e quero que assim seja

mas fica tanto por dizer na teima cega de calar

na boca de pedra que só treme à tua ausência

ou na revolta que cabe no intervalo dos sentidos

Sei-o porque a vida se gasta aliviada de milagres

incontida como se a bebesse aos tragos

a fugir de ser domesticada

Eu sei que vou morrer antes de ti

mas é da tua solidão que tenho medo.



Margarida Piloto Garcia