segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Ar





AR

Os pombos invadem as janelas

cheias dos vultos tristes das mulheres.

Elas exibem exíguas roupas já estafadas

mesmo que ainda brilhem rastos

da antiga sedução.

O vento abre-lhes as narinas

com o cheiro dos frutos caídos

e os pensamentos correm pelo ar

mordidos

pungentes

impacientes como as formas dos corpos.

Sedadas pelos sons dos próprios gritos

as mulheres nas janelas despedaçam-se

e são insanamente levadas pelo ar.

Alongam-se no horizonte

na tinta roxa dos poentes


É no ar que a voz é solta

como uma lágrima de dor.




Margarida Piloto Garcia in-OPUS-4-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2021




Pintura de Vicente Romero Redondo


Fogo





      “Quatro raízes de todas as coisas: Fogo, ar, água e terra.”

Empédocles





FOGO


Está em ti o que procuras.

Preso na garganta, debaixo da língua

na solidão pasmada do corpo

na selva humana ébria e errante

onde te abrigas das incertezas.


Está em ti o fogo dos deuses

mesmo quando imploras

que se dissipe ou te consuma.

Já não há espaço nos lábios, nem

vagas impertinentes a desenharem

linhas e círculos ululantes.

O relógio está pronto para a morte

dizem os deuses extintos.


Mas vem o fogo e calibra-te

as promessas.

Invisível como um sonho

pinta-te o ventre de amarelo-açafrão

e enche-te os poros de vermelho-escarlate.


É o fogo que te transmuta

e te permite dissolver em lava

a raiz do medo.

 



Margarida Piloto Garciain-OPUS-4-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2021

Poema





O poema não tem carne a não ser a que deixas
destrambelhada no vício da cama ou da areia
tostada e com cheiro a maresia e a sexo selvagem
O poema rói-te as unhas até ao ventre
desassossega-te como um demente e cospe-te
dos lábios à garganta, enquanto os dedos sangram
quando escrevem e percorrem a tua pele.
O poema é uma amargura rezada que te possui
um cometa perdido num universo de palavras
uma dança esculpida que te faz estremecer
e estrebuchar , à boleia da loucura
O poema só tem carne quando lhe juntas alma
quando o lês e fazes teu, quando o devoras
e ele te revolve e te canta no peito
O poema só é poema quando nos deita
lado a lado.

© Margarida Piloto Garcia.

 

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Alma de mar

 

Quantas gotas tem o mar?
Quantas ondas, quantas histórias?

As gaivotas são cicatrizes no horizonte
e o vento à minha volta espalha o sol
e corta o espaço como um bisturi.
O mar não é um poema de sábado à noite
nem um prazer de fim de semana.
Tem o peso da memória, o apelo do ventre
a marca indelével inscrita em quem sou

Se nele esticar os braços
os peixes poderão recitar poemas 
enquanto os queixumes das algas 
me lembram o insustentável peso dos anos.
Gemem as sereias num canto encantatório
enquanto guardam todos os que no mar 
respiraram pela última vez.

E tudo começa e acaba aqui
tal como o rasto do primeiro amor.
Não é preciso gritar mesmo que os pulmões
rebentem para respirar a maresia.
Se eu pudesse contar tudo
nem todos os conquistadores ou os mártires
do mar, chegariam para impedir o naufrágio.



Margarida Piloto Garcia-in ALMA DE MAR-publicado por Chiado Books-2021


Pintura de Lylan Lee

 

 

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Abismo


 



Medir o abismo 

com as mãos abertas

desdobrá-lo

parti-lo em mil pedaços

e voltar a colar.

Ou achar a distância 

entre a importância de estar viva 

e o tempo que se vai esgotando.

Nada de métodos científicos

ou ideias transcendentes.

Apenas uma solidão útil a servir

de bitola aos dias sem graça.


Aos poucos perdem-se todas as guerras

mesmo que te esforces para confundir 

a vida , ou será a morte?

Contra o peito, medes o abismo

e ficas a pensar como será cair.


©️ Margarida Piloto Garcia.- in CONEXÕES ATLÂNTICAS VI-publicado por In-Finita 2021


©️ Foto de Masoud Mirzaei


sábado, 14 de agosto de 2021

Amargura




A amargura é um veneno lento
à procura de espaço nas veias.
Às vezes disfarçamos
bebemos um copo
caminhamos sem rumo
com anseios acrobáticos
a moldar-nos os passos.
As ruas enchem-se de gente
mas tu escondes o perfil
na claridade do dia.
Se o veneno alastra e sobe à garganta
tentas engolir a existência
num qualquer poente.
Alinhas as poucas palavras
como túmulos nas alas dos cemitérios.
As lágrimas só te molham por dentro.
Com a amargura como escudo
haverá quem se atreva a amar-te?


© Margarida Piloto Garcia-in CONEXÕES ATLÂNTICAS VI-publicado por In-Finita 2021

© Pintura de Will Barnet