quarta-feira, 29 de maio de 2019

A última carta







E aqui estou eu neste dia que devia ser de medos e não sei de que é. 
Se é dor, então talvez eu tenha morrido antes de ti e deixado de sentir.
Confesso a minha ignorância no que respeita a asas. Perdi a conta aos erros que cometi por não perceber se eram asas de anjos ou traziam em si a artilharia pesada do inferno. Muito a custo percebi que as tuas eram de insecto ou de morcego vampiresco a sugar-me a vida.
Se é saudade eu pergunto de quê. Da vida suspensa em equilíbrio frágil? Do sobressalto do trapézio sem rede em que ela se transformou? O meu coração mais parece um esconderijo com a lotação esgotada, tantos foram os desenganos.
E no entanto, agora nem sei o que sentir. Pedi para ficar só contigo, porque queria saber se ainda estava viva, enquanto tu, nesse caixão, tens a calma solícita de certos mortos. Nada em ti mostra terror ou ansiedade. Nem um ricto de dor te torna humano. E sabes? Não sei se estou, porque não consigo sentir nada. Sou neste momento um corpo amnésico, uma folha em branco.
Entre os sonhos que me galgavam e apressavam o sangue e a existência banal do marido e filhos com passeios dominicais, eu escolhi-te a ti. Mas de normal a vida não foi nada.
Eu queria-te num casamento imaginado à medida de um conto de fadas. Tu envergavas por vezes essa farda para os outros verem, mas fugias de mim sem no entanto me deixares.
Eu inventava paisagens para fugir do terror quotidiano. Nunca me profanavas o corpo, mas dizimavas-me a lucidez e esvaziavas-me de humanidade. Durante anos enchi de lágrimas as paredes da casa e conjuguei todas as tristezas.
E eu amava-te, sabes? Amava-te tanto que suportei todas as traições e humilhações, e todos os desesperos foram sempre trocados pela vertigem dos teus braços e da tua boca.
Como foi possível que a nossa urgência cega tivesse tão rapidamente atingido o ocaso? Mas eu senti-te vida fora alapado a mim, sem no entanto me quereres.
Queria muito estar a derramar lágrimas negras de viúva inconsolável mas todas as fontes secaram em mim. Arrasto comigo um desamor à vida que já nem me inquieta as noites. Que diferença para as noites de outrora em que esperei por ti amarfanhada num canto como um bicho!
Esta agora sou eu, terra lavrada rudemente pelo teu arado. Agora tudo é inevitável e mesmo que me penetre de um modo inconveniente, pouco ou nada me fere. Por isso não sei se estou viva, nem se tudo isto não é apenas um sonho do qual acordarei daqui a pouco.
Mas não quero pensar mais nisso. Já tudo me sorveu a alma e enleou os braços. A minha boca disse o insuportável e rangeu para lá do permitido. Agora quero-a de volta mesmo que não a encha de beijos. Quero o meu corpo mesmo que nele se tenha calado a primavera. Portanto se morri, quero ressuscitar e reivindicar os sonhos. Nada será igual, eu sei. A ingenuidade não volta. Mas vou reiventá-los.
Não me deixaste nada a não ser mágoas e cicatrizes. Estão todas cartografadas dentro de mim, num invejável percurso de muitos anos. Também eu tinha asas mas queimei-as na fome de um aconchego ou de um desejo. Tudo o que restou levas contigo. Dei-te tudo e até as palavras me comeste juntamente com desdém.
O amor pode ser um míssil a esventrar-nos num zénite glorioso, ou uma leve purpurina a soltar-nos o riso e a tornar-nos especiais. Tive uma pequena amostra num jogo fraudulento que eu não podia ganhar. Mas agora acabou.
Se o saldo das lembranças não fosse tão negativo, quem sabe eu não poderia vestir os olhos com alguma amargura?
A ti não devo nada, fiz o melhor que pude e nunca te falhei. Por isso estou aqui.
Esta carta que escrevi, enquanto aqui estamos só os dois, é a última de muitas que se tornaram parte das nuvens que nos escureceram. Vais levá-la contigo para não me perderes como eu te perdi.
Assim, condeno-te a amar-me mesmo que tu não queiras.

PS: Sempre te escrevi cartas de amor. Esta não é excepção.




© Margarida Piloto Garcia in "É URGENTE O AMOR"-publicado por EDIÇÕES VIEIRA DA SILVA-2017






Sonhos






Aral sonhava viver
libertar-se e correr com pequenas pernas
no meio do clã. Crescer e ser mulher
e um dia talhar o dente de mamute
que um homem viril lhe havia de oferecer.
Veio a clava de pedra e o ventre da mãe
fez-se dor e morte e Aral não nasceu.

Cléa tinha mil sonhos.
Em cada miosótis que bordaria, o sangue havia
de correr-lhe fogoso e aquela fome de ser mais
e ser única, seria já esperança a crescer dentro da mãe
Veio a espada mortal e a ponta golpeou-lhe
o coração. Não houve sequer um minuto
para apalpar o tronco de uma árvore.

Joshua sonhava ser músico.
Os violinos que ouvia aninhado no útero
trepavam-lhe cada nervo, a ensinar-lhe tempestades
e dilúvios, coisas que os caminhos lhe trariam.
Veio o golpe e a fome, a pancada e o gás.
Até ao fim , a dor semeou sangue no livro dos mortos
e Joshua não nasceu.

Anne sabia das borboletas
aquelas que a mãe queria alcançar, numa luta
feroz, ganha a pulso nos dias desgastados e espremidos
nas noites de insubmissas vontades, a esconder desejos
Veio a bala e os lábios não conheceram beijo
veio o homem e violou a casa onde crescia
e Anne nunca viu a cor das borboletas

João tinha fome de nascer
A esperança era tão forte que apressava a vida
e o lançava do corpo da mãe para vir ao mundo
alimentar de seiva os corações e adubar os olhos
de beleza e júbilo, dentro e fora da pele.
João nasceu e como ele mais homens e mulheres.
Nesse tempo futuro não existiam armas



© Margarida Piloto Garcia.



© Óleo de Maysa Mohammed


Poema diário





A gaivota solta-se do rio e enche-lhe de cinzento o café morno
Sobe-lhe aos olhos o dia taciturno enquanto a torrada se derrete
afogada na garganta que engole o grito da gaivota
Atiça as pontas dos dedos no teclado que o ludibria
e sorve a maresia, hospedeira da pele.
Perde-se à deriva, sobrevivente de desejos.
Inventa formas imprecisas aconchegadas numa tela
e absorve a languidez das palavras.

Voltam os dedos, soldados camuflados, espiões de sentimentos
retidos em beijos impalpáveis, brancos e oxidados
ou vermelho sangue , vampiros da paixão.
Conta os dias, para viver só um, o que conjuga no presente
sem esperar a eternidade fabricada
Adoça as palavras mas tem uma lâmina em cada lábio
a retalhar as sílabas como um verbo sem sujeito
Deita os olhos ao rio a medir o perímetro das coisas
a força da maré dentro de si, o escrutínio de quem é

De pálpebras fechadas solta a voz ao encontro da apatia
dos dias idênticos e dos inventores de malabarismos
Só quer dizer um nome, mesmo que a gaivota o engula
e leve para sempre o que murmura e lhe enche a boca
Agora as falanges estão rombas de usadas
e é preciso abusar da usura para escrever a luxúria incapaz
Cansa-lhe a vida mas padece do hábito de viver.
Afinal estar vivo é um poema diário.



© Margarida Piloto Garcia. in "PERDIDAMENTE I"-Antologia de poetas lusófonos contemporâneos-publicado por PASTELARIA STUDIOS-2016



© Foto de Lígia Bento.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Fio de prumo





Sentava-se como se um fio de prumo
lhe atravessasse o corpo adivinhando-lhe os contornos
perdendo-se no sexo maduro a disfarçar gemidos.
Não lhe cresciam asas porque os punhais eram antigos
e tinham nomes de demónios.
As boas memórias rolavam como fome espinha acima,
tentando deitá-la onde as palavras eram leito.
Ela agarrava-se ao fio de prumo até a pele
seguir em frente, deixando-a só, a roer o instinto.
Tentou correr mas tiraram-lhe os abraços umbilicais
engoliram-lhe a boca com beijos adiados
plantaram-lhe mentiras nos seios feitos estrada
Nas horas densas acorrenta-se no silêncio e nos gomos
de pequenas felicidades que come com desejo.
Não morreu ainda, o fio de prumo retesa-a
estica-lhe o coração até ao impossível, por isso sabe.

 © Margarida Piloto Garcia in- OPUS-2-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2019



© Foto de Jovana Rikalo



Obsessões







Um...inspiração, dois, três...inspiração. Não, não! Volta ao início, desta vez sem se esquecer de inspirar na segunda contagem. Segue depois o ritual preciso e metódico do banho diário. Dez minutos para fazer a barba, uso de uma toalha imaculadamente branca, água a jorrar forte e impetuosa de um moderno chuveiro, temperatura testada com o termómetro. Irrita-se com o pequeno vinco que nota na camisa azul. Aquele pormenor retira-lhe a concentração para continuar a vestir-se como faz todos os dias. Uma veia salienta-se na testa alta, enquanto um ligeiro tremor lhe crispa os lábios. Tenta ignorar e seguir em frente. A gravata tem duas pequenas listas que distam uma da outra, um centímetro cuidadosamente medido. De uma certa maneira, saber disso traz-lhe a paz que a descoberta daquele pequeno vinco lhe tirou.
Não gosta particularmente do caminho até ao escritório. Não pode controlar o trânsito e assola-o sempre uma incerteza que o atordoa. Aquele dia parece mexer-lhe com os sentidos e desacertar-lhe os mecanismos oleados com que mede a vida. Olha repetidamente para as horas marcadas no carro, na esperança de que o tempo do trajecto não exceda o normal.
E de repente algo lhe subverte a rotina e ameaça transtornar. O sinal vermelho num semáforo fá-lo ficar parado ao lado de um carro azul. Lá dentro uma mulher de cabelo negro olha-o com um sorriso. Repara no batom vermelho, único sinal de maquilhagem no rosto branco. Desvia o olhar, irritado com o sorriso que ela lhe deita. Por causa disso, a noção do tempo torna-se diferente e o semáforo que conhece de cor, parece-lhe distorcer os minutos que faltam para passar de vermelho a verde. Olha de novo para a mulher e agora o sorriso dela parece ter-se estendido até aos olhos. São azuis, quase da cor do carro, e parecem anzóis a serem lançados. E o sinal não muda e ele quer mas não consegue deixar de olhar para o lado. Quando finalmente arranca, tem um fio fino e penetrante de suor a escorrer-lhe pela têmpora direita. O relógio mostra que o tempo de chegada será respeitado mas a ele tudo lhe parece deturpado.
O dia no escritório corre num nervosismo inexplicável. Aquele acontecimento, não sabe explicar porquê, minou-lhe o dia e fez com que as suas defesas de algum modo se diluíssem e o tornassem inseguro. Não consegue esquecer o sorriso que de algum modo sentiu predatório e o destabilizou.
No dia seguinte refaz todos os passos desde que acorda. Desta vez a camisa está imaculada e de algum modo esse facto transmite-lhe uma paz profunda. Dentro de si instala-se a certeza de que o dia vai correr bem e que as rodas dentadas do mecanismo onde encerrou a vida, vão girar sem entraves. No entanto, à medida que faz o percurso habitual, sente que as pulsações se aceleram. Tenta negar este facto mas sabe, bem lá no fundo, que é a chegada ao semáforo da véspera que o indispõe. E finalmente chega o momento. Desta vez tem um carro à sua frente. Não sabe se há-de ou não olhar para o lado e essa incerteza é irritante. Precisa de controlar todos os aspectos da sua vida e não pode ficar à mercê de imprevistos. Resolve olhar e o carro azul não está lá. Porque deveria estar? Afinal até ao dia anterior nunca tinha dado por ele. Antes de arrancar apercebe-se de que o carro está atrás de si.
O sinal fica verde e ele é obrigado a seguir o fluxo de trânsito sem poder ver quem nele segue.
O dia é passado numa espécie de inferno . O pensamento no sorriso que não viu, faz com que almoce dez minutos mais tarde e desarrume a secretária numa imprecisão que detesta.
Novo dia. Agora todos os processos apesar de seguidos não o sossegam. A obsessão centra-se algures num semáforo que a mente antecipa. Já há um medo palpável que a língua saboreia, um travo metálico ao sangue que galopa nas veias. Desta vez fica em primeiro, pronto a arrancar assim que o sinal mude. Ao lado, um carro preto com um homem de óculos que o olha com desconfiança. Atrás de si, num pequeno carro, uma mulher loura vê-se ao espelho. Um certo desespero tolda-o e sente que a roupa se lhe pega ao corpo. Subitamente a mulher do cabelo negro e lábios vermelhos, atravessa a passadeira. O sorriso que lhe deita é devastador. Por momentos deixa de pensar como se tudo se ausentasse dele e o mundo parasse. Um monumental coro de buzinadelas acorda-o do torpor. Ficou parado e o monstruoso trânsito gritou-lhe a sua indignação.
No trabalho não consegue concentrar-se. Tenta por diversas vezes arrumar o pensamento mas todos aqueles desacertos lhe parecem burlescos e demoníacos. Contra tudo aquilo em que acredita, vai mais cedo para casa, mas até essa mudança de hábitos lhe acirra a mente.
No dia seguinte não consegue fazer as suas inspirações. Mal dormiu mas precisa de se arranjar e sair. Resolve apanhar um táxi e seguir até à zona do famigerado semáforo. Sai e fica junto dele enquanto o corpo treme como que a ressacar um vício. Durante um certo tempo observa rigorosamente todos os carros que ali passam, todas as pessoas que atravessam a passadeira. Nada!
Não consegue ir trabalhar e apanha outro táxi de volta a casa. Toma novo duche. A água não saiu como gosta e a temperatura parece-lhe demasiado quente. Não consegue comer. A garganta parece ter dentro uma garra a apertar cada vez mais. Não entende o que se passa com ele e sente a vida desmoronar. Toma dois comprimidos e adormece com a esperança de que tudo não passe de um pesadelo.
Um...inspiração, dois...inspiração, três...inspiração. No dia seguinte tudo parece estar a correr certo. O duche, a camisa, a gravata, tudo segue os normais parâmetros da sua vida.
No trânsito surge o fatídico semáforo. Não vê a mulher do carro azul. A angústia e o medo começam lentamente a invadir-lhe os poros. Olha desesperadamente para o relógio em busca de refúgio. Encontra nele um pouco de paz enquanto o semáforo lhe indica que pode avançar.
Entra no escritório com passos lentos e contados. Pensa que vai superar aquela obsessão que tão terrivelmente o assolou. Precisa de paz para lidar com o novo cliente que a firma lhe designou e que vai conhecer hoje. Entra na sua sala impecavelmente arrumada.
Sentada na cadeira de couro branco, a mulher de cabelo negro e lábios vermelhos, sorri-lhe implacável.





© Margarida Piloto Garcia in "OBSESSÕES" publicado por LUA DE MARFIM 2015 

Instinto de sobrevivência







Como não acredito,
a chuva pouco me molha os olhos
e o estômago tem a dureza dos anos.
Tudo é tão depressa
que a palavra é difícil e transpirada.
Tudo é suportável
porque estou aqui, no impossível,
e existo, mesmo que seja um milagre
primitivo e demolhado em sangue.
Vejo de fora para dentro
o amor a cair em desuso
e eu a correr para uma equação forasteira.
Ávida de mim, digo que quero ainda
que renego incêndios apagados
e que nem tudo se perdeu.
Afinal, tenho alma de vento
e uma boca cheia de gritos.
Ser poeta de faz-de-conta
é apenas instinto de sobrevivência.


 
© Margarida Piloto Garcia. in "II ANTOLOGIA DE POETAS PORTUGUESES, ANTOLOJIE DE POEJI PORTUGHEZI"-publicado em Portugal e na Roménia-EDITURA PIM-2019



© Foto de Ralph Gibson