quarta-feira, 29 de maio de 2019

Sonhos






Aral sonhava viver
libertar-se e correr com pequenas pernas
no meio do clã. Crescer e ser mulher
e um dia talhar o dente de mamute
que um homem viril lhe havia de oferecer.
Veio a clava de pedra e o ventre da mãe
fez-se dor e morte e Aral não nasceu.

Cléa tinha mil sonhos.
Em cada miosótis que bordaria, o sangue havia
de correr-lhe fogoso e aquela fome de ser mais
e ser única, seria já esperança a crescer dentro da mãe
Veio a espada mortal e a ponta golpeou-lhe
o coração. Não houve sequer um minuto
para apalpar o tronco de uma árvore.

Joshua sonhava ser músico.
Os violinos que ouvia aninhado no útero
trepavam-lhe cada nervo, a ensinar-lhe tempestades
e dilúvios, coisas que os caminhos lhe trariam.
Veio o golpe e a fome, a pancada e o gás.
Até ao fim , a dor semeou sangue no livro dos mortos
e Joshua não nasceu.

Anne sabia das borboletas
aquelas que a mãe queria alcançar, numa luta
feroz, ganha a pulso nos dias desgastados e espremidos
nas noites de insubmissas vontades, a esconder desejos
Veio a bala e os lábios não conheceram beijo
veio o homem e violou a casa onde crescia
e Anne nunca viu a cor das borboletas

João tinha fome de nascer
A esperança era tão forte que apressava a vida
e o lançava do corpo da mãe para vir ao mundo
alimentar de seiva os corações e adubar os olhos
de beleza e júbilo, dentro e fora da pele.
João nasceu e como ele mais homens e mulheres.
Nesse tempo futuro não existiam armas



© Margarida Piloto Garcia.



© Óleo de Maysa Mohammed


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