sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Ser






Ser água
e permitir que escorra
entre beijos desfeitos.
Ser vento
e perder a inocência
nas raízes desse cabelo.
Ser terra
e sentir-me inteira
como um pecado original.
Na dúvida ser tudo isso
como um desejo insano e prepotente.
Conjugar verbos no sabor da pele
e gritar necessidades, doces, salgadas,
por vezes amargas e rebeldes.
Ser mar e ser falésia
deixar-me navegar até que tu naufragues
e as gotas de sangue me apaziguem os sentidos.
Ser a memória apagada
a predadora do cansaço e da crueldade mal gasta.
Ser um anjo feroz a abocanhar a vida
numa seminua pequenez.
Ser a mudez da cama vazia.
Fosforescer no verão ou noutra estação qualquer
quando só me falta a tua
num vai e vem de anos ululantes.
Ser o alento enganoso
quando o tempo não tem vagar de existir.
Ser um velho tango marginal
um ritual intimo enroscado num poema.
Ser o aroma da flor acabada de colher
e o grito da manhã.
Ser, enfim, a esperança de sobreviver
a mais um recomeço.



© Margarida Piloto Garcia-in "PALAVRAS DE CRISTAL VOLUME VI"-publicado por MODOCROMIA EDITORA-2020


© Foto de Randall Hobbet - Tetyana

1 comentário:

João Menéres disse...

A imagem foi o incentivo para te visitar novamente ( e há que anos tal não sucedia !...).

Quanto ao poema : reconheço que muitos versos são extremamente belos.
Na poesia, pessoalmente, prefiro a não existência de palavras pouco usadas no cotidiano.
Mas no todo gostei bastante.

Um beijo amigo.