quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Sexto sentido





A vida é um bicho estranho. Tem múltiplas pernas com que se movimenta num ritmo ora acelerado, ora lento. Tem asas com que às vezes voa e esmaga as ausências, e pele que dói no grito quente das memórias. As mãos inventam a vida ao sabor da imaginação e guardam na língua as palavras com que a tecem.
Desde pequena que a avó lhe dizia que ela tinha um dom. Ao longo da vida fora-se apercebendo das suas qualidades, bem como dos seus defeitos. Uns e outros eram o seu centro, a pedra nua onde se perdiam os passos do passado e se escondiam as linhas do futuro. Mas o tal dom nunca o sentira. Não adivinhava vidas, nem sequer vislumbrava essências do que já fora. O seu sexto sentido, a existir, devia-lhe ter falado ao ouvido no dia em que o conheceu. Quem sabe, não a devia mesmo ter esbofeteado acordando-a para a realidade.
Não fora uma paixão à primeira vista. Ela apenas se sentia amputada de um amor sonhado, de algo que a imaginação pedia e o corpo lhe gritava. Ele pintara-lhe a vida de cores garridas, de cativantes atenções e abrira-lhe as portas de um mundo novo. No desassossego dos sentidos incendiavam-se quimeras e nesse tempo não cuidava em perceber se o ombro dele seria porto de abrigo. Vestiu na perfeição uma cegueira engalanada e partiu em direcção a um destino torto.
As traições que lhe bateram à porta foram apenas os preliminares de uma destruição. As únicas coisas em que pensava eram um poderoso aríete a martelar-lhe a mente. Não quebrar. Não desistir. Não recuar. Tentar derrotar as humilhações, as ameaças, as palavras cruéis. Sobreviver, talvez por fora, enquanto por dentro tudo enregela e morre.
E dentro de si as palavras da avó: tens um sexto sentido!
Que sexto sentido? Aquele que a fazia tentar vezes sem conta burilar os factos para que a vida fosse normal, ou o que a dotava de discursos suicidas quando falava com ele?
A vida provara-lhe quão medíocre era a sua previsão de resultados. Cada conquista amainava-lhe os anseios e a esperança crescia-lhe nos olhos. Mas quanto demorava a decepção a engolir-lhe a vida e a persegui-la como um cheiro impiedoso? Muito pouco, por vezes míseros minutos até se sentir de novo exaurida numa solidão só dela, subjugada ao desprezo dele.
E os anos passaram sem que se conseguisse libertar, submetida ao bem dos outros, num arrastar sem sentido. Enquanto sentiu, lutou. Mas chegou a uma altura onde até a imprecisão da dor se tornou um hábito. A vida deixou de pulsar ainda que o coração dissesse que batia.
Naquele dia acordou com a estranha sensação de que algo aconteceria. Seria o tal sexto sentido de que a avó lhe falara? Se sim, não entendia porque esperara que ela tivesse cabelos brancos e o sorriso só lhe assomasse a cara aos trambolhões de tão pouco usado.
Levantou-se e traçou as linhas do costume. Começou a percorrer a estrada de mais um dia sem surpresas, nem alegrias. A sensação com que acordara era cada vez mais forte ao ponto de se tornar numa insidiosa dor de cabeça. Se não fosse a rotina e ela escrava de uma condição que a vida determinara, ou a sua cobardia lhe exigira, e teria saído para mergulhar o olhar nalgum ponto azul do rio.
Mas ficou presa nas teias da casa a arrastar a irrespirável solidão.
E foi nessa altura que o irreparável aconteceu. Tudo aquilo que ele um dia ameaçara estava agora a cumprir-se.
Só nos últimos segundos de vida se apercebeu que afinal a avó não mentira.



© Margarida Piloto Garcia in "SEXTO SENTIDO"  - publicado por LUA DE MARFIM EDITORA-2016

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