domingo, 10 de julho de 2022

Espera





                                            Grassa a fome nas comissuras dos lábios

e na língua fala a semente do vício.

No entanto teimo em ir à boleia das vagas

enquanto o grito espreita num botão de camisa

desabotoado em rota encapelada de arrepios

na cicatriz nua dos olhos de uma fúria ausente

nas aspas de uma vida feita de raízes imóveis

a crescerem para dentro vermelhos naufragados.

E no poema cala-se a dor , a raiva, a luta

faz-se oco este lugar de silabas desperto

eternamente ansioso, febril e nunca saciado

na espera muda do que lhe pertence.




Margarida Piloto Garcia



 

sábado, 21 de maio de 2022

Não







 


Não, não vou dizer guerra

falar de guerra, encher a boca

com a palavra guerra.

Eliminei-a de todos os dicionários

de todos os livros, de todas as enciclopédias.

Ostracizei a palavra em todas as línguas

e dialetos para que ninguém a pronuncie

a leia, a desenhe ou sequer a sonhe.

Não a fechei numa caixa, não a atirei ao mar

nem a mandei para o espaço.

Simplesmente fi-la desaparecer.

Como? Não me perguntem. Desapareceu

e o modo como o fiz fugiu-me da memória.


Agora as crianças não sabem o que é

os homens não a conseguem criar

e a imaginação libertou outras palavras

quentes e suaves e dentro de todos

numa teimosia frágil o amor renasceu.


Não, não vou negar como o passado

me tentou enganar, mas esta imensa escuridão

deixou-nos de mão dada e a alvorada já

não tem arrependimentos inesperados.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Memória





Há dias em que não me lembro de nada

sigo uma rota de crateras extintas

e vou construindo estações de pele e sal.

Alimento parábolas para fintar as horas

e peneirar as dúvidas cinzentas.

Lá fora a vida espera em gestos inventados

seguindo uma lei sálica que não sei quebrar.

As palavras não frutificam

no deserto da memória.

Este não é o meu mar

este não é o meu leito

esta não é por certo a minha vida.

Muito antes de temer os dias

nos solavancos da terra a prender os pés

muito aquém das gaiolas que se tornam

presenças diárias, entre as esquinas do sol

fui aprendendo a segurar as quedas.

As mágoas disfarçam-se num arroz doce

polvilhado de afetos gritantes.


Há que dizer que as mouras encantadas

são sempre desfeitas pelo destino.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



Foto de Monia Merlo


 

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Preguiça





Sou o sangue que te alimenta

a raiva que te ruge o entardecer

a ave que te debica os ossos

a cama vazia que te esqueceu.


Sou o adereço de uma peça teatral

o jogo entre a chuva e o sol

o ranger do sonho na distância

a escuridão sedenta de loucura.


Sou a espada e a flecha

um dia incompleto e sem fim.

Sou o espanto que te cala a solidão

e o sumo que te explode nos lábios.


Sou a tua rua palmilhada

e as minhas mãos pequenas agarram

os desesperos incómodos

quando a vida se agarra às urgências.


Sou tudo isso mas a preguiça

não me deixa mudar de rumo

e ata-me as lágrimas, a língua e os desejos.


Talvez a possa esvaziar de sangue e gritar.




Margarida Piloto Garcia in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



segunda-feira, 18 de abril de 2022

Neblina








Às vezes ainda espero ver-te o vulto

numa qualquer manhã de neblina.

O sol esconde-se no dia mascarado

e ainda há rumores de estrelas

nas palavras que não dizes.

Tenho um cheiro a laranjas nas mãos

e o meu corpo não sabe o que o espera.

Se calhar não sabemos mesmo nada

e na pureza da neblina somos cegos

a arquitetar vazios com vogais redondas.

Este teu vulto é um particípio passado

uma ferida virtual que vai desabar.

O amor calou-se e agora somos também

surdos e mudos, vazios e resignados

a pisarmos esperanças perdidas.

Vestimo-nos com arame e farpas

a esconder um coração morto

e o intolerável peso do corpo.


Amanhã volto para ver se há neblina

ou se o teu vulto adormeceu para sempre

nas ruínas da memória.



Margarida Piloto -GarciainOPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


 

Desejos





Canta-me como se fosses um rouxinol

desvendando na tarde o eterno mistério

Dança-me em passos de fogo

num tango gemido e predador.

Colhe em mim o abraço lânguido

que te despe a pele e a cobiça.

Prende o meu beijo na tua boca nua

e arrasta as palavras nas papilas

num degustar febril.



Mas depois de me cantares e dançares

lavra-me com a tua língua peregrina

impúdica mas inocente.

Saliva-me as rotas que te conduzem

ao destino traçado.

Morde a eriçada penugem

banhada em rios de desejo.

Desagua em mim como se fosses cascata

como se fosses a criação do universo.



Usa dedos calibrados e perfeitos

para me desvendares.

Colhe na boca o pólen que semeiam

e deixa-me fazer de ti

um deus ou um escravo não importa.

Avança em mim como um conquistador.

Mas quando te desfizeres em ondas

despedaçadas e rítmicas

apenas gritarás o delírio do meu nome.




Margarida Piloto Garcia


Foto de Sasha van der Werf










sábado, 2 de abril de 2022

Sedução



                                                               Espera-me logo.

Levo a seda vermelha

a escorregar-te nas mãos.

Levo os olhos impúdicos

grávidos do vício do teu corpo.

Podes vendá-los e arrepiar-me a pele

com dedos eruditos mas selvagens.

Cega-me as mãos com nós de veludo

e depois, louco e voraz,

suga com a boca a raíz do prazer líquido

a bordar-me a pele em gotas translúcidas.

Submete-me julgando-te poderoso e vencedor.

Mas não te enganes! Entre os meus e os teus gritos

só tu és o cativo.



Margarida Piloto Garcia



 

Eu sei




Eu vou morrer antes de ti

é o que diz o calendário e o sangue nas veias

caçador das últimas batidas

ou os ossos frágeis a lamberem o túrgido sol.

É esse o caminho

e o que está escrito nas rugas desarmadas

e inocentes, esgravatadas num tempo sem pudor

Eu vou morrer antes de ti

e isso não me diz a lua nem os astros

nem sequer o ar que sucumbe a cada respiração

Eu vou e quero que assim seja

mas fica tanto por dizer na teima cega de calar

na boca de pedra que só treme à tua ausência

ou na revolta que cabe no intervalo dos sentidos

Sei-o porque a vida se gasta aliviada de milagres

incontida como se a bebesse aos tragos

a fugir de ser domesticada

Eu sei que vou morrer antes de ti

mas é da tua solidão que tenho medo.



Margarida Piloto Garcia


 

quinta-feira, 17 de março de 2022

O princípio e o fim






Chegou o fim e tu sabes

sabes que morreste e nem deste por isso.

Talvez o fim e o princípio

não façam assim tanta diferença

porque às vezes a dor e as lágrimas

são um fator comum a mostrar que temos pressa.

Não importa se uma bala nos ilumina

se um comboio nos leva de viagem

ou se uma faca nos lavra ou uma cama

nos enterra no silêncio.

Chega o tempo em que as mãos já não abraçam

e os beijos ficam esquecidos nas bocas.

A vida atirou-te de bruços para o abismo

e as palavras afogaram-se no que não disseste.

Não há fórmulas mágicas para sobreviver

a não ser as que deixas na inquietação de alguns.

Às vezes a morte é um carrasco distraído

que te leva quando começas a aprender

mesmo que seja um passo para a loucura.

Aqui não acontece nada a não ser

termos o mesmo destino.


O problema é que estás morta

mas continuas teimosamente a querer viver.



Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022



 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Anos

 









Presente, passado ou futuro

um emaranhado sem respeito

uma fera a comer-nos

ou uma impalpável fome

como uma dor antiga que não morre.

A nossa indiscreta fragilidade

precisa de um manual de sobrevivência.

É nele que te apoias

é nele que tens dez anos e todos os sonhos

ou quinze e conquistas a sede infinita.

Em cada ano somos apenas um inquilino

à espera de um despejo

ou um argumento que não é levado à cena.

O nosso coração é dado como entrada

no negócio da vida e raras vezes

somos reembolsados.

Dos anos vão ficando as cicatrizes

as veias azuis, as rugas da indiferença

os deslizes absurdos e a ingratidão

que atravessa o tempo até rasgar a pele.


Os anos são propícios a crueldades

e talvez eu me vá embora

sem que ninguém dê por isso. 




Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022



Foto de Alicja Posluszna

















quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Meses






Que são os meses senão uma sucessão de dias

a correrem pelas curvas da estrada?

Afinal é comigo que as noites se matam

numa velocidade que me explode nas mãos.

Há tantas paixões a albergarem os meses quentes

todas necessárias para que a cicuta não se beba

a víbora não te morda ou o espaço não te cale

ou leve ao precipício.


Balanças, balanças, mas não cais

até que a vida avariada se cale

sem que alguém a conserte.

Nos meses frios ardes sozinha

porque o amor só te ensina a perder.


Os meses correm e voltam frequentemente

a acordar a memória do corpo

e a pré-história da pele e do desejo antigo.

É urgente passar a mão pelos cabelos

enquanto as hienas não surgem

e te cospem na cara que tudo já foi dito.




© Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022


Foto de Dasha Pears

 

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Dias









Os dias correm num espaço antigo

como um medo infantil de uma queda brusca.

A lágrima é a monotonia da água correndo

nos feriados do corpo, inútil de tanta espera.

Alguém me falou de felicidade e eu aceito

estar aqui enquanto os dias permanecem mudos

numa morfina que me invade as veias.


São duros os dias, mesmo quando não parecem

e a felicidade é um pássaro aceso em cada madrugada.

Já não os conto porque a vida é uma aposta perdida.


Escrevo sempre que preciso ignorar as mentiras

tal como uma lista de desejos

onde anoto as esperanças caducadas.

Com o tempo, afiei as palavras

e agora os dias apenas se instalam.



© Margarida  Piloto  Garcia 

in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022



Foto de Daniel Arsham

 

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Um minuto ou alguns segundos





Breve o dia, breve o ano, breve tudo.

Não tarda nada sermos.


Ricardo Reis in “Odes”

Heterónimo de Fernando Pessoa



Um minuto ou alguns segundos


No tempo em que eu era feliz as manhãs

tinham cheiro a sol e as árvores

em frente da janela falavam de outros lugares

Agora a lembrança debruça-se devagar

hesitante nos poucos segundos de atração

até se deixar cair apressadamente

como se tivesse chegado tarde.

Num último espaço para o fôlego

encetas a descida e experimentas o voo

que te dilata as veias. Soltas os cabelos

e deslizas no ar morno enquanto inventas verbos

e pressentes os sonhos impossíveis.

Um silêncio escuro enche-te os olhos

e as vidas dos outros abrem-se sem pudor

enquanto vais caindo ao longo das janelas.

Sem arrependimentos inesperados

o voo é uma anestesia, dos dias, dos meses

e dos anos. No início e no fim, as semanas

só têm segundas-feiras.


Na queda iminente da boneca partida

não há contadores de estórias

e o vento apaga-te o rasto.



© Margarida Piloto Garcia-

 in- " As palavras, rios de tantas águas "-publicado por IDEÁRIOS 2022


 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Quando tudo acaba






                                                              “ Ser adulto é quase impossível no mundo

só imberbe.”


Rui Costa-Breve Ensaio Sobre a Potência





Quando tudo acaba


Os homens pardos comem a luz

e vêm de um sítio que não nos é nada.

Estendem a mão, mas não o sorriso

ou têm só dentes e rugas para nos tirar o fôlego.


Crescem como ervas daninhas

sem palavras escritas, mas em overdoses de bytes.

Por muito que os pardais nos cantem

e as flores nos alaguem de aromas

os homens pardos só trazem escuridão e medo

e ululam com o vento a ditar-nos finais.


Tu dizias

que ninguém virá

nem o frio insuportável

nem o amor para sempre”.

Eu digo que tu vens porque trazes as cores

dos sonhos que não são finitos.


Ainda não sei quando ou como tudo acaba.

Agora que te sentas sozinho, talvez me possas ensinar.




© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO AO MEU POETA- publicado por Temas Originais











 

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Da inutilidade das palavras



 

                                                        “ Escrevo, decerto, por qualquer

                                    razão inútil que não vais nunca entender”


                                    Rui Costa- Mike Tyson para principiantes




Da inutilidade das palavras


Dizer o porquê de certas coisas

afigura-se-me inútil, tal como comer ou respirar.

Já amar é outra coisa. Não sei mesmo se tal existe

ou se inventámos o verbo e o substantivo

mas é uma febre que não queremos curar.

Será que há quem nos salve ou subimos sós

todas as encostas e galgamos precipícios

como super heróis?

Temos fome de tudo. Sugamos como vampiros

as memórias, os sonhos, os pensamentos.

Nas madrugadas arpoamos as manhãs

na esperança de galoparmos o mundo e esperamos.


Não existem deuses no céu cada vez mais irrespirável.

Tudo o que nos resta está para além do infinito

e nem esse a ciência nos garante.

Vazamos com a maré, ao sabor da lua.

São inúteis as palavras, assim descaroçadas.



© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO AO MEU POETA- publicado por Temas Originais








segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Coisas que sei

 






                                                              “ Não, nem todo o limão é amarelo quando

                                       A mão de alguém o toca e humaniza...”


                                     Rui Costa-O Pequeno-Almoço de Carla Bruni





Coisas que sei


Não são muitas as coisas que sei

mas queria saber todas.

Às vezes debato-me com esta fome

e complico a vida.

Cultivo o silêncio, uma e outra vez

porque as palavras desgastam e eu tenho

esta raiva tola a anunciar a morte.

As coisas passam assim: as árvores ardem

os animais morrem, os homens fazem a guerra.

O comer sobre a mesa não tem acenos

e o medo invade os lençóis.

Não há caminhos mágicos, nem rituais certos.

A incerteza é mesmo importante para seguir em frente.

Muitas das feridas não saram, nem com dias serenos

ou ainda que fosse nómada de uma viagem incerta.

O avesso de tudo é o que temos.


Eu continuo a querer saber coisas, mesmo que desnecessárias..





© Margarida Piloto Garcia in-"SOB EPíGRAFE"-TRIBUTO AO MEU POETA- publicado por Temas Originais

Foto de Ziqian Liu