quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Allegro





E agora que vou fazer

se a vida em tamanho natural

não coube no meu bolso?

Que vou fazer depois de quebrar as asas?

Andar pelos corredores

a carpir palavras?


Na minha frente há cinzas de cigarros

e corpos com memória, fantasmas

que solicito quando a porta se fecha.

No tempo dos venenos

esqueço as promessas e abraço o silêncio

e o sangue das rosas.


Corro de mão dada com a criança

que subia ao palco ou com a adolescente

que remava e sonhava que o amor

não usava bisturi, nem dissecava a pele.


A vida corre allegro ma non troppo

não vá estragar a sinfonia.



Margarida Piloto Garcia


Foto de Monika



 

sábado, 13 de abril de 2024

Moderato


 

Moderato


A felicidade devia ser assim

como um riso de criança que nunca se esvai

tão vasto como um horizonte

reinventando a vida sempre que se acorda .

O sal na pele, a febre do mar, areia a escorrer

em castelos de sonho, azedas para trincar,

veredas para as batalhas de cavaleiros,

letras a mostrarem a voracidade do mundo

e a ignorância de se ser feliz.



Céus que se fantasiam de cores

melodias, passos de dança, cabelos brilhantes,

jogos de faz de conta que não se repetirão.

Tudo parece lento mas é apenas mais um engano

dos tantos que desconheço.


Um dia a metafísica do sangue vai lembrar-me



Margarida Piloto Garcia


Foto de Shelby Robinson


domingo, 31 de março de 2024

Adagio








Lentamente chego de um lugar de mistério

onde o tempo se alonga e a água é mágica

a correr num silêncio desconhecido.


Chego com a força do sangue

e o grito nasce-me na garganta

com a ferocidade que ainda não conheço.

O que importa é cerrar os punhos

e agarrar com as pequenas mãos

a carne e a pele de um mundo que deixei.


Chego ao lugar onde sou estranha e luto

sem saber ainda que muitas outras lutas

terei de enfrentar.

Ainda não suspiro nomes, nem palavras

só a fome grita e a saudade do lugar

escuro e silencioso onde dormia e sonhava.





Margarida Piloto Garcia

Excerto de pintura de Botticelli


 

sexta-feira, 22 de março de 2024

Amor e lágrimas




Há quanto tempo não escrevo uma carta de amor? Se calhar era paixão e eu não o percebi. Ou talvez um amor sonhado. Nada como um amor cismado a rasgar pulsos! Descubro umas tantas por aí, mas são mais de uma tristeza esfaqueada que se alonga na penumbra da casa. Em todas elas me abandonas como os pesadelos onde não há antídoto que dilua o veneno no sangue, ou morfina que debele a dor que cresce no silêncio.

Essas cartas perdidas, estão escritas em papel e não passam de cadafalsos onde o corpo foi guilhotinado. Neles se perde a cabeça mas ninguém aparentemente morre. Mas é mais ilusão, porque já todos são fantasmas destruídos pelas sílabas afiadas.

Tento de novo escrever a carta de amor mas o coração está carcomido, a vida estala, o desespero rói e a falta de ar não é produto de uma sinfonia apaixonada, mas apenas um carrasco que se ergue em cada manhã. Por vezes é mais fácil estender os dedos da noite sobre a nossa pele!

Retorno à carta, com ou sem destino, mas as palavras resvalam entre a ternura e a paixão, começam a escrever nos corpos com poemas entranhados a cortar como facas. Possivelmente acho que estou enganada, que não sei a quem escrevo, que não sei nada porque ninguém sabe. Mais uma vez volto a enganar-me mas afinal é do engano que nascem as cartas de amor.

Insisto mesmo que o amor se cale numa quase morte. E se há coisas que esqueci, outras não quero lembrar e é preferível misturá-las com sumo de laranja e beber cada gota como se fosse cicuta.

Surgem palavras cheias do meu sangue. Por vezes tímidas, por vezes destemidas, focadas numa guerra que cresce nas veias e cria uma devastação da qual não consigo regressar.

Talvez seja melhor assim. Voltarei à carta de amor quando as lágrimas regressarem ao meus olhos secos.




Margarida Piloto Garcia


Foto de Laura Makabresku

 

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Premonições


 



Não eram os silêncios que mantinham as bocas afastadas. Era mais aquela quietude do lugar vazio e a ansiedade rija dos dias preguiçosos e abandonados, onde a vida se estilhaçava.

No tempo, escondiam-se os gemidos do corpo a quererem ser quilómetros, enquanto corria atrás da premonição ditada pelo destino. Mas a estrada não era assim tão grande, reduzida que fora a meros centímetros de felicidade.

Desde pequeno que se fazia incólume às cicatrizes, numa astúcia visceralmente concebida, que os anos haviam de aperfeiçoar não dando hipótese a qualquer pedaço de alma remendado.

A mãe dissera-lhe que ele tinha em si esse dom, o código para decifrar sinas.

Nunca acreditara!

Talvez fossem sonhos, ou apenas desejos, aquilo que lhe fazia ver as coisas de uma outra forma, a adivinhar futuros roucos e respirados, na ânsia dos outros que não era a dele. Ele continuava imune ao que profetizava, o vento a assobiar-lhe nas sobrancelhas e as mãos presas na imperfeição seca dos lábios.

Até que tinha acontecido aquele dia!

Ela tinha surgido numa manhã de chuva, como uma arritmia nascida de trovões no peito, uma quase demência assimétrica que tanto o derramava em lágrimas, como lhe soltava o riso.

Tudo o que ele não era, emergia nela. Tudo o que almejava, despertava nela semente, flor e fruto. Nada existia a não ser o sorriso dela, a pele dela, a palavra pendurada no lábio rubro, o gesto tão angelical quanto demoníaco, com que o afagava e possuía. A vida destrambelhava-se louca e impúdica atrelada à premonição desvairada da felicidade eterna.

Porque só podia ser esse dom a dar-lhe tantas certezas, enquanto ele se atrevia a imaginar uma vagarosa eternidade! Nunca sequer lhe tinha passado pela cabeça, que as premonições só servissem aos outros e lhe estivessem negadas e encerradas na fria escuridão.

Agora, passados alguns anos, só sentia mágoa da sua incompetência. Tomara por premonição o sonho e o desejo e descansara no filho da mãe de um destino anunciado e prometido.

E não fora ele o arauto dessa desgraça?

Para quê o esforço inaudito se afinal tudo estava previsto?

Ela passou por ele e seguiu, tão forte como um guerreiro, tão insubmissa e decisiva quanto um sinal vermelho. Ele não percebeu nada, agarrado à fatalidade de uma premonição, sem entender o terror da solidão nas veias.

Agora o silêncio espreguiçava-se nele a consumi-lo numa indolência ofensiva. Na cama vazia não havia odores de sexo selvagem, nem gritos, nem palavras gemidas. No futuro só existia ele, sem espaço para sonhar, sem uma única premonição acertada.

Afinal, tudo o que ele sempre tinha querido, era a incerteza do destino e mãos como asas para voar.



Margarida Piloto Garcia











 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Do virtual ao real


 


Está uma bela tarde, daquelas em que o sol de inverno nos tece uma malha junto à pele.

Entro no lounge do restaurante sobre um mar cerúleo.

Descubro Peter, que reconheço pelas fotografias e me identifica pelo sorriso.

Cumprimentamo-nos e por certo cada um fica a tecer considerações sobre o aspecto real.

Durante muito tempo, eu, ele e Ana, sua prima e minha velha amiga, escrevemos e trocámos vozes, poses e pouco mais através da tela.

Hoje, anfitriã num país desconhecido, o Peter real parece-me mais baço que o virtual. Não posso deixar de reparar que caminha ligeiramente curvado, como se os 40 anos de vida lhe tivessem desabado sobre os ombros.

Sentados na mesa encetamos conversa sobre tantos assuntos já abordados, mas agora numa exploração mais intimista porque real e próxima.

Talvez seja aí que o meu corpo, de braço dado com a mente, começa a recuar.

Por entre as palavras ditas num inglês de Oxford, ele ataca o couvert. Molho discretamente pão num azeite aromático e enquanto sinto a gota solar picar-me a língua, debato-me com o frenesim na minha frente.

Aos poucos um vórtice começa a formar-se no meu âmago.

Os pratos chegam. Para mim um risotto, para Peter um bife que me parece acabado de cortar da vaca ainda a pastar no prado.

A conversa esfriou porque ele se degladia com nacos vampirescos de carne.

Debico os grãos de arroz, que embora deliciosos, ameaçam formar um pequeno exército marchando em parada militar, do estômago à boca.

Peter emborca o vinho como se estivesse no deserto agarrado a um cantil de água.

O vinho é de um púrpura profundo como um desejo nocturno, mas ele violenta-o e dilui-lhe a cor na carne ensanguentada.

Tento deter o risotto fardado a caminho da expulsão, bebendo um pouco de água.

Repasto devorado, Peter recomeça a conversa. Mas com os sentidos alerta como uma teia de dor, as palavras são papagaios de papel a embaterem na minha cabeça.

Implacável, descubro-lhe meia dúzia de pontos de caspa no casaco e o uso agressivo e abusador de um bom D&G.

O simpático almoço transmutou-se num suplício.

Os grãos de arroz, soldados liliputianos, retomam a marcha.

Aflita, esforço-me por ouvir dentro de mim a Gloria Gaynor que a plenos pulmões canta : “ I will survive”, “ I will survive”.


© Margarida Piloto Garcia

domingo, 3 de setembro de 2023

Loucos





Só os loucos escrevem

debaixo da canícula da tarde

polindo as palavras na areia

enquanto o suor desfaz em borrões

cada frase, cada letra ,

como se varresse uma convidada indesejada.

É a poesia que cheira a maresia

e sobe pelas narinas

desfazendo-se em imagens do passado.


Só os loucos sabem

das possibilidades dos inocentes vingarem

quando brincavam ao sol

sem necessitarem de palavras.

Antes tinham ainda o fogo sem marcas

sem que no coração restasse cinza morna.


Na areia o poema esquecido

já não é o mesmo. Transfigurou-se

e desapareceu sob outros destroços.

Com a água nos flancos, os loucos

lambem gota a gota o sal

com que insistem em escrever.




Margarida Piloto Garcia-in ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA"Entre o sono e o sonho"-Volume XV


Foto de Anna Heimkreiter


 

sábado, 26 de agosto de 2023

Rotas


 


Continuamos a esconder

os caminhos

mesmo que não nos sirvam

mesmo que as gaivotas

não nos conheçam

e se diluam na paisagem.


Tudo em volta

é uma espécie de silêncio

um vazio sem sonhos

um baloiçar de humanidade

qual gaivota

a engolir a paisagem

mas a quedar-se livre sobre o mar.

Nenhuma nuvem é igual

e o brilho do sonho

é só desolação.

No mar tudo é permitido

porque ambos sabemos

que nos iremos afundar.



 

Margarida Piloto Garciain-CONEXÕES ATLÂNTICAS- Brasil-Portugal, edição comemorativa, publicado por IN-FINITA, 2023


Foto de Valerii Sushko

domingo, 20 de agosto de 2023

Tempestades




 “ São como cristal,

as palavras. “


Eugénio de Andrade in “Até amanhâ”




Sei que não adivinhas

que esta vida é uma desventura erótica

e que se os nossos pés não se tocam,

a mensagem telepática dos dias

é apenas uma história suspensa

a pedir desesperadamente um fim.


As palavras são enormes e cheias de bolor

não me cabem nos bolsos

já não rasgam o corpo

e são tão inúteis como dentes partidos.

Apesar disso mordemos cada sílaba

e enchemos de gelo o tédio dos dias.




Margarida Piloto Garcia in- Tributo a Eugénio de Andrade. Publicado por Temas Originais-2023 




 

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Gaivota

 


É louca a gaivota

que apenas olha para o dia

e no seu voo alonga-se sobre as ondas

grasna ao sol , come

e volta ao mar.

Nas suas penas simples

segura a vida, nas falésias transfiguradas.


Nada lhe traz mais que um qualquer

Fernão Capelo lhe diria.

Voa com a fome desperta

nos sulcos solitários das nuvens.


Parte num céu aberto

numa quilha de mar

o vento curvado do nada

sem princípio e sem fim.


Anda pela beira do mar

sem promessas

num dia repetido.



Margarida Piloto Garcia in-CONEXÕES ATLÂNTICAS- Brasil-Portugal, edição comemorativa, publicado por IN-FINITA, 2023


segunda-feira, 10 de julho de 2023

Saudade





Chamei-te criança sonhadora

implacável nos contos inventados

por entre veredas sem pensar no destino.

Chamei-te jovem apaixonada

a pisares degraus em fúria incendiada.

Entretanto já as veias pulsavam

na nortada da pele ou num beijo

roubado pelo vento suão.

Chamei-te mulher açoitada por lembranças

presa por fios a dobarem-se

em palavras velhas e ácidas

com a fúria a atravessar-te os ossos.


E agora como chamo à mulher

que se perdeu nas marés sem corpo?

Daqui não se vislumbram janelas sobre o Tejo

nem copas de árvores a entornarem

seiva no desejo a florescer.

A respiração da manhã

é apenas um compasso de tempo

um ballet onde te elevas no que não foi teu

a desfiar memórias dos lugares errados.


E enquanto te perdes num diário soturno

eu encho a boca de saudade.


Margarida Piloto Garcia-in FRAGMENTOS DE SAUDADE, publicado por CHIADO BOOKS-2023


Foto de Tina Spratt

 

domingo, 14 de maio de 2023

Feelings 8




Esconder a felicidade no concâvo da mão
apertá-la no ventre
comê-la madura em sôfregas dentadas
deixá-la abrir em flor antes que morra.

Margarida Piloto Garcia

 

Feelings 7

Falta uma onda
única e necessária
parar diluir em mim
os teus vestígios
e expurgar no sal
esta paixão.

Margarida Piloto Garcia




terça-feira, 9 de maio de 2023

Escritas





O vento sempre escreveu

incorrigíveis caligrafias

por entre os verdes que eu avistava

e percorria nos tempos livres.

O sol pasmava em mim os contos

colossais que eu tinha medo

que fossem uma injúria se falhassem.


No cinema ao ar livre as fantasias

tinham a vibração onde nada se frustra

mas apenas aguarda, animal vigilante

a dizer-te que o tempo já passou

mesmo que a menina em ti

não queira acreditar.


E escreves

talvez porque acredites

que as palavras nem sempre

são pedras. Às vezes são sangue

às vezes são doces.


Margarida Piloto Garcia-in AMANTES DA POESIA E DAS ARTES, publicado por IN-FINITA, 2023


Foto de Mai Syashin


 

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Feelings 6


Decidi ficar inteira
não aceitar pedaços
beber cada segundo
como elixir de vida,

Margarida Piloto Garcia

Fantasmas




Nunca sabemos onde estão

se guardam a noite

se enchem de fel os dias

ou se se comovem com o fulgor

da poeira das coisas banais.


Às vezes deslizam no branco

das paredes e não mentem mais.


Os fantasmas cheiram às águas de colónia

do antigamente e espreguiçam-se

em pliés de traços ínfimos.

Agarram-nos a memória em sinapses

descompostas que não reconhecemos.


Todos os dias tentam vergar-nos

mas nunca o conseguem.

Quanto muito acabam a noite

vestindo a nossa pele.



Margarida Piloto Garciain AMANTES DA POESIA E DAS ARTES, publicado por IN-FINITA, 2023



Foto de Natalia Drepina

 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Feelings 5



Espinhos e flores
naturais e opostos
tal como amor e ódio
tal como tu e eu.
A mesma história
sempre escrita
num verbo irregular.



Margarida Piloto Garcia




 

quarta-feira, 29 de março de 2023

Feeelings 4





E a lava se faz pedra
quando não entendes
O rio deixa de correr
O voo cessa
E a febre do meu seio
não se esconde mais
na tua mão.


Margarida Piloto Garcia
 

segunda-feira, 27 de março de 2023

Feelings 3

 



Eu não quero negar
a pele, a ânsia, o veludo
o escorregar de manso
a febre insidiosa.
Mas o sim te um preço
e é na marca feroz
que o sinto e reconheço.

Margarida Piloto Garcia
Arte de Marci Mac Donald

Feelings 2



Pequeno 

mas intenso

é o teu nome

na minha boca


Margarida Piloto Garcia


Foto de Natalya Karavay


 

Feelings 1




De que serve escrever

se ninguém lê ?

De que servem as imagens

se ninguém vê ?

De que serve um corpo

cheio de sonhos ?

Mais vale ser nuvem

a chover nos teus olhos.


Margarida Piloto  Garcia


 

quarta-feira, 15 de março de 2023

Guarda-me







Guarda-me a parte
no bolso do casaco, na fronha da almofada
na pele morna do amanhecer
Guarda-me onde o cheiro das tardes
te invada os cabelos e se esconda nos teus braços
feitos algas.
Não me amargues o corpo, nem amoleças o cio
com palavras químicas e vazias
Guarda-me apenas onde o mundo mora
e respira, este desejo terrorista de ti.



Margarida Piloto Garcia



 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Lobotomia






Antes que a luz quebrasse

a translúcida vidraça

já era bela aos olhos dele.

Tão bela que a distância

entre o real e o imaginário

se fundia nas frestas de luz

e se recompunha despudorada

nas sombras de um velho cão.

Acordavas os sons das ervas

no quintal e guardavas os vincos

na almofada vazia.


Depois desmantelaste-me

como um velho relógio.

Agora a minha ausência

é uma tempestade e uma sede

que te consome e não entendes.

Devias ter pensado nisso

quando me envolveste de escuridão

e deixaste de correr para os meus braços.



Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Empréstimo

 





Já te emprestei os dedos

com os quais escrevia cartas de amor

e dedilhava lentamente os teus músculos

como se fossem argamassa de música

para construir cidadelas

não fosse a paixão fugir.

As minhas pernas também levaste

mas esqueceste-as embrulhadas noutra pele

ao ponto de eu não saber andar.

Numa sexta-feira emprestei-te os meus olhos

e eu fiquei sem saber onde estava a vida

e os pontos cardeais sangravam secretamente.

Embrulhei os cinco sentidos na esperança

de te fazer feliz, eu que nunca pensei que

a felicidade fosse tão pouca.

Quis enviar uma mensagem a um qualquer deus

mas já não tinha voz.

Agora, côncava no silêncio de mais uma noite

rasgo o vazio com uma navalha e grito:


"DEVOLVE-ME TODOS OS EMPRÉSTIMOS"!




Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



Arte fotográfica de Richard Davis


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Qualquer coisa





Qualquer coisa

o cheiro das laranjeiras

o poente entre nuvens

o incêndio no meu corpo

o animal ofegante na língua

a viagem secreta por fazer


e o meu dia dissolvido no teu nome


Qualquer coisa

as tangerinas nas mãos

as palavras escorregadias

a queda do coração ao sinal vermelho

a loucura que não me devolvem

a dor das chamas nos olhos


e o meu dia dissolvido no teu nome


Qualquer coisa

não chega

não silencia

não cura

o meu dia dissolvido no teu nome.


Resta-me a noite




Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022



 

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Ouves?





Ouves?

São as hienas comprometidas

com a noite a rirem-se numa

contagem decrescente para o rasgar

das vidas onde cravam dentes ágeis.

Já nós seguimos apáticos e meio cegos

sem saber o que nos espera

nas ruas que não mudam de lugar.


Ouves?

É a música que nos invade os passos

e nos cala a boca farta de palavras do passado.

A febre quebra-nos os ossos

desfazendo a dança e o corpo esquece

as memórias das promessas feitas.


Ouves?

As hienas voltaram assim que

me largaste a mão mas o meu vestido

só morreu na boca das traças.




Margarida Piloto Garcia-in OPUS-5-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMASORIGINAIS-2022


Pintura de Clare Elsaesser