Está uma bela tarde, daquelas em que o sol de inverno nos tece uma malha junto à pele.
Entro no lounge do restaurante sobre um mar cerúleo.
Descubro Peter, que reconheço pelas fotografias e me identifica pelo sorriso.
Cumprimentamo-nos e por certo cada um fica a tecer considerações sobre o aspecto real.
Durante muito tempo, eu, ele e Ana, sua prima e minha velha amiga, escrevemos e trocámos vozes, poses e pouco mais através da tela.
Hoje, anfitriã num país desconhecido, o Peter real parece-me mais baço que o virtual. Não posso deixar de reparar que caminha ligeiramente curvado, como se os 40 anos de vida lhe tivessem desabado sobre os ombros.
Sentados na mesa encetamos conversa sobre tantos assuntos já abordados, mas agora numa exploração mais intimista porque real e próxima.
Talvez seja aí que o meu corpo, de braço dado com a mente, começa a recuar.
Por entre as palavras ditas num inglês de Oxford, ele ataca o couvert. Molho discretamente pão num azeite aromático e enquanto sinto a gota solar picar-me a língua, debato-me com o frenesim na minha frente.
Aos poucos um vórtice começa a formar-se no meu âmago.
Os pratos chegam. Para mim um risotto, para Peter um bife que me parece acabado de cortar da vaca ainda a pastar no prado.
A conversa esfriou porque ele se degladia com nacos vampirescos de carne.
Debico os grãos de arroz, que embora deliciosos, ameaçam formar um pequeno exército marchando em parada militar, do estômago à boca.
Peter emborca o vinho como se estivesse no deserto agarrado a um cantil de água.
O vinho é de um púrpura profundo como um desejo nocturno, mas ele violenta-o e dilui-lhe a cor na carne ensanguentada.
Tento deter o risotto fardado a caminho da expulsão, bebendo um pouco de água.
Repasto devorado, Peter recomeça a conversa. Mas com os sentidos alerta como uma teia de dor, as palavras são papagaios de papel a embaterem na minha cabeça.
Implacável, descubro-lhe meia dúzia de pontos de caspa no casaco e o uso agressivo e abusador de um bom D&G.
O simpático almoço transmutou-se num suplício.
Os grãos de arroz, soldados liliputianos, retomam a marcha.
Aflita, esforço-me por ouvir dentro de mim a Gloria Gaynor que a plenos pulmões canta : “ I will survive”, “ I will survive”.
© Margarida Piloto Garcia