quarta-feira, 29 de maio de 2019

A última carta







E aqui estou eu neste dia que devia ser de medos e não sei de que é. 
Se é dor, então talvez eu tenha morrido antes de ti e deixado de sentir.
Confesso a minha ignorância no que respeita a asas. Perdi a conta aos erros que cometi por não perceber se eram asas de anjos ou traziam em si a artilharia pesada do inferno. Muito a custo percebi que as tuas eram de insecto ou de morcego vampiresco a sugar-me a vida.
Se é saudade eu pergunto de quê. Da vida suspensa em equilíbrio frágil? Do sobressalto do trapézio sem rede em que ela se transformou? O meu coração mais parece um esconderijo com a lotação esgotada, tantos foram os desenganos.
E no entanto, agora nem sei o que sentir. Pedi para ficar só contigo, porque queria saber se ainda estava viva, enquanto tu, nesse caixão, tens a calma solícita de certos mortos. Nada em ti mostra terror ou ansiedade. Nem um ricto de dor te torna humano. E sabes? Não sei se estou, porque não consigo sentir nada. Sou neste momento um corpo amnésico, uma folha em branco.
Entre os sonhos que me galgavam e apressavam o sangue e a existência banal do marido e filhos com passeios dominicais, eu escolhi-te a ti. Mas de normal a vida não foi nada.
Eu queria-te num casamento imaginado à medida de um conto de fadas. Tu envergavas por vezes essa farda para os outros verem, mas fugias de mim sem no entanto me deixares.
Eu inventava paisagens para fugir do terror quotidiano. Nunca me profanavas o corpo, mas dizimavas-me a lucidez e esvaziavas-me de humanidade. Durante anos enchi de lágrimas as paredes da casa e conjuguei todas as tristezas.
E eu amava-te, sabes? Amava-te tanto que suportei todas as traições e humilhações, e todos os desesperos foram sempre trocados pela vertigem dos teus braços e da tua boca.
Como foi possível que a nossa urgência cega tivesse tão rapidamente atingido o ocaso? Mas eu senti-te vida fora alapado a mim, sem no entanto me quereres.
Queria muito estar a derramar lágrimas negras de viúva inconsolável mas todas as fontes secaram em mim. Arrasto comigo um desamor à vida que já nem me inquieta as noites. Que diferença para as noites de outrora em que esperei por ti amarfanhada num canto como um bicho!
Esta agora sou eu, terra lavrada rudemente pelo teu arado. Agora tudo é inevitável e mesmo que me penetre de um modo inconveniente, pouco ou nada me fere. Por isso não sei se estou viva, nem se tudo isto não é apenas um sonho do qual acordarei daqui a pouco.
Mas não quero pensar mais nisso. Já tudo me sorveu a alma e enleou os braços. A minha boca disse o insuportável e rangeu para lá do permitido. Agora quero-a de volta mesmo que não a encha de beijos. Quero o meu corpo mesmo que nele se tenha calado a primavera. Portanto se morri, quero ressuscitar e reivindicar os sonhos. Nada será igual, eu sei. A ingenuidade não volta. Mas vou reiventá-los.
Não me deixaste nada a não ser mágoas e cicatrizes. Estão todas cartografadas dentro de mim, num invejável percurso de muitos anos. Também eu tinha asas mas queimei-as na fome de um aconchego ou de um desejo. Tudo o que restou levas contigo. Dei-te tudo e até as palavras me comeste juntamente com desdém.
O amor pode ser um míssil a esventrar-nos num zénite glorioso, ou uma leve purpurina a soltar-nos o riso e a tornar-nos especiais. Tive uma pequena amostra num jogo fraudulento que eu não podia ganhar. Mas agora acabou.
Se o saldo das lembranças não fosse tão negativo, quem sabe eu não poderia vestir os olhos com alguma amargura?
A ti não devo nada, fiz o melhor que pude e nunca te falhei. Por isso estou aqui.
Esta carta que escrevi, enquanto aqui estamos só os dois, é a última de muitas que se tornaram parte das nuvens que nos escureceram. Vais levá-la contigo para não me perderes como eu te perdi.
Assim, condeno-te a amar-me mesmo que tu não queiras.

PS: Sempre te escrevi cartas de amor. Esta não é excepção.




© Margarida Piloto Garcia in "É URGENTE O AMOR"-publicado por EDIÇÕES VIEIRA DA SILVA-2017






Sonhos






Aral sonhava viver
libertar-se e correr com pequenas pernas
no meio do clã. Crescer e ser mulher
e um dia talhar o dente de mamute
que um homem viril lhe havia de oferecer.
Veio a clava de pedra e o ventre da mãe
fez-se dor e morte e Aral não nasceu.

Cléa tinha mil sonhos.
Em cada miosótis que bordaria, o sangue havia
de correr-lhe fogoso e aquela fome de ser mais
e ser única, seria já esperança a crescer dentro da mãe
Veio a espada mortal e a ponta golpeou-lhe
o coração. Não houve sequer um minuto
para apalpar o tronco de uma árvore.

Joshua sonhava ser músico.
Os violinos que ouvia aninhado no útero
trepavam-lhe cada nervo, a ensinar-lhe tempestades
e dilúvios, coisas que os caminhos lhe trariam.
Veio o golpe e a fome, a pancada e o gás.
Até ao fim , a dor semeou sangue no livro dos mortos
e Joshua não nasceu.

Anne sabia das borboletas
aquelas que a mãe queria alcançar, numa luta
feroz, ganha a pulso nos dias desgastados e espremidos
nas noites de insubmissas vontades, a esconder desejos
Veio a bala e os lábios não conheceram beijo
veio o homem e violou a casa onde crescia
e Anne nunca viu a cor das borboletas

João tinha fome de nascer
A esperança era tão forte que apressava a vida
e o lançava do corpo da mãe para vir ao mundo
alimentar de seiva os corações e adubar os olhos
de beleza e júbilo, dentro e fora da pele.
João nasceu e como ele mais homens e mulheres.
Nesse tempo futuro não existiam armas



© Margarida Piloto Garcia.



© Óleo de Maysa Mohammed


Poema diário





A gaivota solta-se do rio e enche-lhe de cinzento o café morno
Sobe-lhe aos olhos o dia taciturno enquanto a torrada se derrete
afogada na garganta que engole o grito da gaivota
Atiça as pontas dos dedos no teclado que o ludibria
e sorve a maresia, hospedeira da pele.
Perde-se à deriva, sobrevivente de desejos.
Inventa formas imprecisas aconchegadas numa tela
e absorve a languidez das palavras.

Voltam os dedos, soldados camuflados, espiões de sentimentos
retidos em beijos impalpáveis, brancos e oxidados
ou vermelho sangue , vampiros da paixão.
Conta os dias, para viver só um, o que conjuga no presente
sem esperar a eternidade fabricada
Adoça as palavras mas tem uma lâmina em cada lábio
a retalhar as sílabas como um verbo sem sujeito
Deita os olhos ao rio a medir o perímetro das coisas
a força da maré dentro de si, o escrutínio de quem é

De pálpebras fechadas solta a voz ao encontro da apatia
dos dias idênticos e dos inventores de malabarismos
Só quer dizer um nome, mesmo que a gaivota o engula
e leve para sempre o que murmura e lhe enche a boca
Agora as falanges estão rombas de usadas
e é preciso abusar da usura para escrever a luxúria incapaz
Cansa-lhe a vida mas padece do hábito de viver.
Afinal estar vivo é um poema diário.



© Margarida Piloto Garcia. in "PERDIDAMENTE I"-Antologia de poetas lusófonos contemporâneos-publicado por PASTELARIA STUDIOS-2016



© Foto de Lígia Bento.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Fio de prumo





Sentava-se como se um fio de prumo
lhe atravessasse o corpo adivinhando-lhe os contornos
perdendo-se no sexo maduro a disfarçar gemidos.
Não lhe cresciam asas porque os punhais eram antigos
e tinham nomes de demónios.
As boas memórias rolavam como fome espinha acima,
tentando deitá-la onde as palavras eram leito.
Ela agarrava-se ao fio de prumo até a pele
seguir em frente, deixando-a só, a roer o instinto.
Tentou correr mas tiraram-lhe os abraços umbilicais
engoliram-lhe a boca com beijos adiados
plantaram-lhe mentiras nos seios feitos estrada
Nas horas densas acorrenta-se no silêncio e nos gomos
de pequenas felicidades que come com desejo.
Não morreu ainda, o fio de prumo retesa-a
estica-lhe o coração até ao impossível, por isso sabe.

 © Margarida Piloto Garcia in- OPUS-2-Selecta de poesia em Língua Portuguesa- publicado por  TEMAS ORIGINAIS-2019



© Foto de Jovana Rikalo



Obsessões







Um...inspiração, dois, três...inspiração. Não, não! Volta ao início, desta vez sem se esquecer de inspirar na segunda contagem. Segue depois o ritual preciso e metódico do banho diário. Dez minutos para fazer a barba, uso de uma toalha imaculadamente branca, água a jorrar forte e impetuosa de um moderno chuveiro, temperatura testada com o termómetro. Irrita-se com o pequeno vinco que nota na camisa azul. Aquele pormenor retira-lhe a concentração para continuar a vestir-se como faz todos os dias. Uma veia salienta-se na testa alta, enquanto um ligeiro tremor lhe crispa os lábios. Tenta ignorar e seguir em frente. A gravata tem duas pequenas listas que distam uma da outra, um centímetro cuidadosamente medido. De uma certa maneira, saber disso traz-lhe a paz que a descoberta daquele pequeno vinco lhe tirou.
Não gosta particularmente do caminho até ao escritório. Não pode controlar o trânsito e assola-o sempre uma incerteza que o atordoa. Aquele dia parece mexer-lhe com os sentidos e desacertar-lhe os mecanismos oleados com que mede a vida. Olha repetidamente para as horas marcadas no carro, na esperança de que o tempo do trajecto não exceda o normal.
E de repente algo lhe subverte a rotina e ameaça transtornar. O sinal vermelho num semáforo fá-lo ficar parado ao lado de um carro azul. Lá dentro uma mulher de cabelo negro olha-o com um sorriso. Repara no batom vermelho, único sinal de maquilhagem no rosto branco. Desvia o olhar, irritado com o sorriso que ela lhe deita. Por causa disso, a noção do tempo torna-se diferente e o semáforo que conhece de cor, parece-lhe distorcer os minutos que faltam para passar de vermelho a verde. Olha de novo para a mulher e agora o sorriso dela parece ter-se estendido até aos olhos. São azuis, quase da cor do carro, e parecem anzóis a serem lançados. E o sinal não muda e ele quer mas não consegue deixar de olhar para o lado. Quando finalmente arranca, tem um fio fino e penetrante de suor a escorrer-lhe pela têmpora direita. O relógio mostra que o tempo de chegada será respeitado mas a ele tudo lhe parece deturpado.
O dia no escritório corre num nervosismo inexplicável. Aquele acontecimento, não sabe explicar porquê, minou-lhe o dia e fez com que as suas defesas de algum modo se diluíssem e o tornassem inseguro. Não consegue esquecer o sorriso que de algum modo sentiu predatório e o destabilizou.
No dia seguinte refaz todos os passos desde que acorda. Desta vez a camisa está imaculada e de algum modo esse facto transmite-lhe uma paz profunda. Dentro de si instala-se a certeza de que o dia vai correr bem e que as rodas dentadas do mecanismo onde encerrou a vida, vão girar sem entraves. No entanto, à medida que faz o percurso habitual, sente que as pulsações se aceleram. Tenta negar este facto mas sabe, bem lá no fundo, que é a chegada ao semáforo da véspera que o indispõe. E finalmente chega o momento. Desta vez tem um carro à sua frente. Não sabe se há-de ou não olhar para o lado e essa incerteza é irritante. Precisa de controlar todos os aspectos da sua vida e não pode ficar à mercê de imprevistos. Resolve olhar e o carro azul não está lá. Porque deveria estar? Afinal até ao dia anterior nunca tinha dado por ele. Antes de arrancar apercebe-se de que o carro está atrás de si.
O sinal fica verde e ele é obrigado a seguir o fluxo de trânsito sem poder ver quem nele segue.
O dia é passado numa espécie de inferno . O pensamento no sorriso que não viu, faz com que almoce dez minutos mais tarde e desarrume a secretária numa imprecisão que detesta.
Novo dia. Agora todos os processos apesar de seguidos não o sossegam. A obsessão centra-se algures num semáforo que a mente antecipa. Já há um medo palpável que a língua saboreia, um travo metálico ao sangue que galopa nas veias. Desta vez fica em primeiro, pronto a arrancar assim que o sinal mude. Ao lado, um carro preto com um homem de óculos que o olha com desconfiança. Atrás de si, num pequeno carro, uma mulher loura vê-se ao espelho. Um certo desespero tolda-o e sente que a roupa se lhe pega ao corpo. Subitamente a mulher do cabelo negro e lábios vermelhos, atravessa a passadeira. O sorriso que lhe deita é devastador. Por momentos deixa de pensar como se tudo se ausentasse dele e o mundo parasse. Um monumental coro de buzinadelas acorda-o do torpor. Ficou parado e o monstruoso trânsito gritou-lhe a sua indignação.
No trabalho não consegue concentrar-se. Tenta por diversas vezes arrumar o pensamento mas todos aqueles desacertos lhe parecem burlescos e demoníacos. Contra tudo aquilo em que acredita, vai mais cedo para casa, mas até essa mudança de hábitos lhe acirra a mente.
No dia seguinte não consegue fazer as suas inspirações. Mal dormiu mas precisa de se arranjar e sair. Resolve apanhar um táxi e seguir até à zona do famigerado semáforo. Sai e fica junto dele enquanto o corpo treme como que a ressacar um vício. Durante um certo tempo observa rigorosamente todos os carros que ali passam, todas as pessoas que atravessam a passadeira. Nada!
Não consegue ir trabalhar e apanha outro táxi de volta a casa. Toma novo duche. A água não saiu como gosta e a temperatura parece-lhe demasiado quente. Não consegue comer. A garganta parece ter dentro uma garra a apertar cada vez mais. Não entende o que se passa com ele e sente a vida desmoronar. Toma dois comprimidos e adormece com a esperança de que tudo não passe de um pesadelo.
Um...inspiração, dois...inspiração, três...inspiração. No dia seguinte tudo parece estar a correr certo. O duche, a camisa, a gravata, tudo segue os normais parâmetros da sua vida.
No trânsito surge o fatídico semáforo. Não vê a mulher do carro azul. A angústia e o medo começam lentamente a invadir-lhe os poros. Olha desesperadamente para o relógio em busca de refúgio. Encontra nele um pouco de paz enquanto o semáforo lhe indica que pode avançar.
Entra no escritório com passos lentos e contados. Pensa que vai superar aquela obsessão que tão terrivelmente o assolou. Precisa de paz para lidar com o novo cliente que a firma lhe designou e que vai conhecer hoje. Entra na sua sala impecavelmente arrumada.
Sentada na cadeira de couro branco, a mulher de cabelo negro e lábios vermelhos, sorri-lhe implacável.





© Margarida Piloto Garcia in "OBSESSÕES" publicado por LUA DE MARFIM 2015 

Instinto de sobrevivência







Como não acredito,
a chuva pouco me molha os olhos
e o estômago tem a dureza dos anos.
Tudo é tão depressa
que a palavra é difícil e transpirada.
Tudo é suportável
porque estou aqui, no impossível,
e existo, mesmo que seja um milagre
primitivo e demolhado em sangue.
Vejo de fora para dentro
o amor a cair em desuso
e eu a correr para uma equação forasteira.
Ávida de mim, digo que quero ainda
que renego incêndios apagados
e que nem tudo se perdeu.
Afinal, tenho alma de vento
e uma boca cheia de gritos.
Ser poeta de faz-de-conta
é apenas instinto de sobrevivência.


 
© Margarida Piloto Garcia. in "II ANTOLOGIA DE POETAS PORTUGUESES, ANTOLOJIE DE POEJI PORTUGHEZI"-publicado em Portugal e na Roménia-EDITURA PIM-2019



© Foto de Ralph Gibson


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

365







365 dias para me fazeres sorrir
para me debruçares na janela e
roeres até ao osso cada segundo de desvaire.
Tantos dias e tão poucos
para  juntares às minhas , as tuas asas
e descobrires o voo planado dos que sonham.
Ergo hoje o desejo maior de ser assim,
mulher, deusa, seiva eterna da terra.
Tu és o complemento que me faz ser una.
E nasces cada dia num novo ano
prenhe de vagas estelares.



© Margarida Piloto Garcia in "BOAS FESTAS"-publicado por SILKSKIN EDITORA-2015


© Imagem de Gosia Janik





segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Quando o amor chegar






Mesmo que não possas fechar os olhos
mesmo que o medo te arda como uma gargalhada incendiada
quando o amor chegar, segue-o
Embora os seus caminhos sejam íngremes e difíceis
enterra os silêncios ainda que rasgues novas cicatrizes
Quando o amor chegar, rende-te
deixa que as suas asas te abracem
te sejam ninho e rima, ou restos de um sonho sedento
Embora o punhal escondido nas suas penas te fira o coração
confia-lhe a pele naufragada num ardor antigo e indecifrável
Quando o amor chegar, renasce
mata a fome e a febre dos desassossegos em busca do verso não escrito
e grita nele todas as letras enquanto o corpo morre a cada dia


© Margarida Piloto Garcia in-ANTOLOGIA DE POESIA CONTEMPORÂNEA VOL 10 "ENTRE O SONO E O SONHO"-publicado por CHIADO EDITORA-2019


© Foto de Edmund Kesting

domingo, 12 de abril de 2015

Paz



Traz-me um pedaço de céu
um rumor de asas, uma flor amarela.
Peço-te que em todo o lado procures
olhos azuis ou castanhos, peles de todas as cores
rezas, canções, danças secretas.
Extermina no pó todos os horrores
e apodrece os malefícios da louca humanidade.
Ri-te e ama no branco dos lençóis, no azul das águas
num abraço fraterno a respirar doçura.
Traça um armistício da lua até à terra
numa onda de paz que nos transborde e submerja
Que o único gume a existir
seja o das bocas que se beijam.


© Margarida Piloto Garcia

© Foto de Grethe Holmgard Lange

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Cupido





O amor não tem prazo marcado. Nasce quando quer e vai-se embora sem pedir permissão. O amor não tem pontos cardeais nem obedece a climas. Pode ser um furacão ou uma brisa. Acaricia-te ou atira-te contra a parede se tentas analisá-lo ou dar-lhe nomes. O amor não se compra em centros comerciais nem se desdobra em cortesias uma vez por ano. Está ali ao alcance da mão, ou tão longe que precisas de te atirar do alto de uma montanha para o alcançares. O amor não tem hora marcada, nem dia para se repetir ad eternum nas rádios e nas televisões de um qualquer país. O amor não é um dia, porque é todos os dias ou não é. Pode aprisionar-te num segundo e libertar-te noutro e as horas que o marcam não se acomodam num mero relógio. O amor é assim: tem fases, declinações, pausas e reticências. Precisa de dádivas e de paixões. O que ele não tem de ser é um cupido idiota a vender-se por aí num só dia do ano.



© Margarida Piloto Garcia 


© Arte de David Renshaw

domingo, 25 de janeiro de 2015

Recusa





O corpo recusou-se a morrer
numa indecente paixão sem arrependimentos
Num esforço atrevido
negou-se a enterrar as flores da pele
e os frutos das lutas famintas
que corriam sempre como rios
nas latitudes e longitudes das camas gemedoras
Disse não ao terror nas veias
que os outros lhe deixavam nas palavras
e aos abraços feitos de tendões frios
a virarem-na ao contrário
Decepou os oráculos
e atreveu-se a amassar as sombras que  a tolhiam
estrangulando os medos
alinhavados nos nomes que não queria pronunciar
Rasgou a dor que respirava
e soltou o canto eterno mas secreto
Sem pudor atirou o corpo contra o outro
num passo de dança rasgado e febril.
Depois... dissolveu-se às camadas
palmo a palmo, no palato inquieto de uma boca
e no abismo assanhado de outra pele. 


© Margarida Piloto Garcia  in "POEMÁRIO 2016"  - publicado por PASTELARIA STUDIOS  EDITORA-2016

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Uma estrela de memórias






Tinha chegado o dia em que sentia o fim da infância, mesmo que os cabelos brancos lhe dissessem, que essa há muito que não existia. O tempo estava esquecido num gemido abafado ou num sorriso áspero e remoto na profundidade da memória.
Mas hoje acordara tenso, despido da ilusão roubada num mundo de aparências, onde a maior era sem dúvida ele. O tempo migrara-lhe da mente, recusa feita à vida surda e cega que nunca o deixara envelhecer. Que importavam os caminhos armadilhados na pele, rugas cativas da contagem dos dias e das horas?
Até ali olhara-se e apenas vira um miúdo ladino mas sonhador, ou até um jovem feito de vagarosa eternidade. Pouco lhe interessava a tosse dos olhos virando lágrimas ou as curvas escorregadias da boca a dizerem não. A tal juventude agarrava-se à pele e escondia-se nos bolsos fundos das calças. Os ossos não gemiam e o corpo ainda cantava mesmo que a solidão lhe enchesse a boca de sal a afundar-se feito mar dentro do estômago.
Não percebia a razão de agora se sentir diferente, nem o facto do silêncio esquivo não lhe saber a paz mas a morte anunciada. Curiosamente nunca pensara muito nisso, naquela ilusória juventude, fruto de uma imperfeição sabiamente agarrada aos sentidos.
Não era um fantasma à deriva, nem um louco preso a esfaimados desvarios. Apenas achava impossível que o seu tempo findasse e que aquilo que via e sentia fosse somente resultado de um estado de espírito matreiro, adoçado e maquiavélico.
Continuava a não perceber aquela transformação. Olhava-se no espelho onde um desconhecido o enfrentava,  desafiador. Há coisas que levam tempo, como se fossem pegajosas e escorressem  para parte incerta onde nunca as encontramos.
Era assim aquele olhar vindo do espelho, uma boca a abrir e fechar balbuciando palavras para ouvidos moucos, enquanto ele se refugiava numa zona de conforto onde não visse, nem ouvisse,  a mente desfragmentada e impúdica assumindo aquele que ele era.
Não só o corpo lhe era estranho, como também aquela pungente sensação de peso e a condescendente sabedoria de quem viveu muitos anos. Pela primeira vez, um medo frio suou-lhe da pele e roubou-lhe as certezas redondas, perfeitas e enfadonhas.
Talvez que a sua escolhida solidão, sem mulher, sem filhos, sem enredos familiares, o  tivessem poupado ao deslizar do tempo, qual Peter Pan sem Wendy no horizonte.
Afligiu-se a tentar desesperadamente agarrar a criança perdida que incauta lhe fugia, a respiração instável a dizer-lhe que tinha  um coração antigo, enquanto o corpo lasso se despia da casca jovem e se impregnava de males não sarados.
E os pontos de interrogação enfileiraram-se seguindo o caminho inverso ao da verdade.
E tão perto que ela estava, como se o abraço escondido da dúvida, finalmente o agarrasse e se desfizesse.
Atirou-se de peito feito a essa verdade, a juntar todos os nãos até perfazer um sim,  vestido com os medos do papão escondido da infância.
E percebeu. E enquanto percebia, olhava. E depois de olhar, cheirou a memória de quem muito viveu e sentiu nas mãos o que magneticamente as ocupava.
Uma estrela dourada e cintilante acendeu-lhe nas veias um calor morno num quase cheiro de caramelo queimado. Tocou-lhe e sentiu chispas que lhe encheram os olhos de imagens de uma vida.
A estrela da avó! A estrela cheia de histórias, velhinha e frágil, que hoje , não sabia porquê, fora resgatar a uma gaveta perdida .
Súbito , todas as memórias se desfizeram nele como um cataclismo.
Aquela estrela era o seu cordão umbilical, a sua rota. Como tinham sido belos aqueles dias de Natal junto à chaminé da avó!
Lembrava-se tão bem do alguidar onde sovava a massa que depois de frita e polvilhada de açúcar, ele trincava e lambia como se não houvesse amanhã. O abraço da avó só cabia no mundo dos sonhos, de tal modo era mágico e reconfortante. Os dias de Natal tinham o aconchego de uma mão cheia de sorrisos  e de raios de sol resgatados à tristeza.
Mas nada, nada, se comparava à estrela dourada que ele se habituara a ver no alto do pinheiro ainda a cheirar a resina. E as memórias rangiam nele como cordas velhas e esticadas, assaltando-o como feras à solta. Por muito que as datas e os nomes se esfumassem , por mais que os anos e a vida se cansassem dele, tudo desaguava em catadupa, deixando-o desarmado, com o destino a pesar-lhe nos ombros.
E enquanto lá fora o Natal marcava a vida de tantos, ele compreendia que fora essa lembrança que o levara a descobrir a estrela refugiada num canto obscuro da gaveta.
Curiosamente,  este último Natal roubava-lhe o abrigo da pseudo imortalidade. Passou a ter anos e vidas acumuladas em cada poro, em cada batida do coração.
Mas tal como lhe deu idade, também lha retirou.
Apertou forte a estrela das memórias e de novo foi criança.
E sendo-a, sonhou e voou.

Partiu e nunca mais voltou.



© Margarida Piloto Garcia in "LUGARES E PALAVRAS DE NATAL III" publicado por LUGAR DAS PALAVRAS EDITORA 2014

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Dicotomia



Fizeste  amor comigo
como se de sexo se tratasse.
O corpo tinha a perversão do poder
e aprisionaste em mim o desejo louco
lúbrico e insano nas pernas a tremer.
Não houve remorsos
nem sombras
nem medos.
Nem mesmo palavras de esperança
de luz
ou redentoras frases.
Só não percebeste
que era mesmo sexo o que precisava
mas libertado nos teus olhos
como se de amor se tratasse.



© Margarida Piloto Garcia









domingo, 30 de novembro de 2014

Pensamentos soltos




De que servem os braços onde não cabes?
Lianas sem flor azul nascidas em mãos de adaga.
De que serve a pele, plena de um momento cheio
desde o dia em que a madrugada acordou o meu pulso?
Essa pele onde as armas escreveram desalinhadas vogais
e os dias naufragaram no vício maduro e intrometido.
De que servem os olhos, frestas incendiadas?
Nem anjos nem demónios se escondem
nas palpitações dos cílios que beijaste.
De que serve a boca onde as estrelas acordam?
De nada, sem essa respiração suspensa sobre mim
e a tua invasão destes meus lábios cerrados.



© Margarida Piloto Garcia

© Foto de Joné Reed





quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Parto



Do ventre solta o fio do grito e corta a paixão umbilical
tão macia e voraz que não a dessedenta
Leva o olhar a fingir uma reza até que nada veja
nem o grito que sobe, nem as mãos desvairadas
a moldarem em cálculos infinitesimais o lugar vazio.
O grito sobe e o sismo viaja nos caminhos do corpo
numa pornografia de tendões e músculos
numa ode orgíaca de pele e rios caudalosos
Engole as palavras a fingir que é saliva
e só o grito paira sobre si, agora morno e pálido
agora sonolento, até que o gere uma outra vez




© Margarida Piloto Garcia


© Foto de Jaroslaw Datta









segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A carta



Não, não cerres os olhos para não me leres. Não te atrevas sequer a rasgar a folha sépia que encontrei para te chamar à razão. Escolhi-a pela sua aparência nostálgica a lembrar outros tempos, pelo seu toque esmaecido para melhor temperar a raiva.
Não deixes cair lágrimas amargas diluindo a tinta azul da china com que a escrevi. Garanto-te que a escolhi num espécie de namoro de outras eras, bucólico e primaveril.
Mas nada disso interessa. Agora aqui, estamos apenas nós e quero que tenhas a coragem de ler estas palavras escritas com força e mágoa.
Não te escapes de novo em malabarismos vários e em piruetas de explicações. Não faças de tudo um circo. Não cries raízes de desgraça, nem desistas das palavras. Não amarfanhes a voz, nem emudeças os gestos em afectos bruscos.
Não, não e não.
O teu imperativo tem de ser um sim à vida. Um sim canoro e estridente, uma viagem de boca escancarada a sugar sangue-vida.
Sê tudo o que sabes e nunca uma bengala ou uma migalha devorada pela voracidade da vida.
Lê o que te escrevo enquanto te olhas no espelho rasgando as neblinas do passado.
Não, não é uma emboscada, nem uma astuta ilusão, nem mesmo um impertinente  passo de dança. Falo-te da vida, essa meretriz tão amada e odiada, essa louca espartilhada entre anos mastigados e outros levados num bater de asas e curvas sem regresso.
Tens de te erguer e continuar. Não importa se ela te cegou a estrada e te entornou os desejos no chão. Tu ainda tens olhos para te estatelares ao comprido no amor e boca para gritares despenteadas paixões. Tens mãos para rirem no corpo e atarem laços no coração.
Nestes anos, raras vezes me ouviste, ou ouviste e não te deste ao trabalho de entender.
Recorri a todos os subterfúgios, atrevendo-me a semear em ti todas as revoltas. Debateste-te e esmurraste muitas vezes o pó dos dias numa loucura voraz e selvagem.
Mas saíste sempre arrepiado por entre estreitas margens, a sorver o medo espesso de magoar os outros.
E tu?
Não és gente e carne e alma contrafeita? Não és poema sem rimas? E tu?
Porque não rasgas os contratos e foges dos vampiros que te emolduram como um anjo viciado?
Hoje, mesmo que te  jogues no ar como um trapezista ébrio, mesmo que percas os braços e as pernas, mesmo que nem os músculos, nem as veias,  respondam aos apelos, não perderás o norte e lerás o que escrevo.
Então o frio escorregará dos teus ombros e os vendedores de banha da cobra tremerão antes de tentarem castrar-te o destino.
Ainda é tempo. Ainda não gastaste as 7 vidas que um dia um gato te deu.
O delírio de um improvável céu azul ainda se sustenta numa arquitectura frágil mas desperta.
Por isso, vais ler-me e erguer-te como os guerreiros fazem, porque as batalhas não se ganham em acomodadas camas.

Muita força da sempre tua


Consciência



© Margarida Piloto Garcia in "CARTAS"-publicado por LUA DE MARFIM -2014  







sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Destinos paralelos




Ela

 Vejo-te da minha janela, quando o sol se descobre numa letargia que parece apaziguar os meus anseios. Ele chega de mansinho embrulhado numa estranha neblina matinal e entrega-se a um ritual sem pressas.
Tu não. Vejo-te assomar de supetão à janela e expandires-te num abraço à alvorada. Escondida no cortinado esvoaçante desenho com os olhos cada centímetro da tua pele. Não sei bem porque o faço . Apenas sei que após a primeira vez, tudo se transformou num hábito que me foi viciando e tornando cada vez mais cativa de ti.
Tudo em ti é de uma velocidade quase dançada, como se fosses uma chita a correr na pradaria ou um vulcão a irromper na paisagem.
Encerro-me de olhos fechados no teu abraço ao sol e o calor do dia atinge-me em cheio como uma pancada surda mas grávida de prazer.
Passas as mãos pelo cabelo que brilha nas últimas gotas de água que lhe deixaste ficar. Quase lhe posso sentir o aroma e entretenho-me a saboreá-lo na língua e nos lábios, ao mesmo tempo que um calafrio me lembra que é necessário regressar à realidade .
Tem sido difícil fazê-lo desde o dia em que chegaste e ocupaste a janela do lado.
Passei a monitorizar as tuas vindas à janela como se eu fosse um pássaro atento e vigilante na procura do valioso alimento. E tu és tal. Enches os meus dias da perfeição com que te revestes aos meus olhos. Umas vezes és um deus nórdico, outras um cavaleiro mítico, mas sempre tens algo que foge à rotineira classificação de humano.
Mas sei que o és porque te sinto daqui. O teu cheiro chega invasivo mas sedutor e eu de gaivota curiosa passo rapidamente a ave de rapina, os olhos brilhando na predatória busca da presa.
Mas as noites são ainda as piores horas que o dia me traz.
Chegas e a lua escorre pelo teu corpo desenhando-te e esculpindo-te. Ansiosamente seguro o meu despudorado arfar enquanto te debruças, os olhos a sondar a noite.
As minhas mãos são gatunos a roubar o silêncio do meu corpo, intrusos a explorar a solidão. Dançam-me no corpo loucas e vorazes e empurram-me de encontro à janela numa posse quase agonizante.
Tu nada sabes destes meus pensamentos e sentires. Nunca me olhaste ou sorriste. A ti basta-te existir nessa janela enquanto me fazes e desfazes ao longo das horas em que nela te debruças.
Eu não sou capaz de me furtar à paralisia que me tolhe . Engasgado na garganta está mais do que um olá. Está um grito rude que me assola, a rasgar toda a sensatez  e a despir-me de tudo o que em mim é postiço e imposto.
Sei que vou morrer de sede por não te beber os lábios e ficar cega de tanto te olhar. Tu jamais serás meu.

Ele

Quando vim para aqui morar reparei de imediato em ti. Senti-te pequena como um pardal  mas explosiva no modo como o teu corpo se mexe.
Escondes-te atrás dos translúcidos cortinados mas eu consigo descobrir-te quando o sol num passe mágico te lança um dos seus raios. Envolta neles pareces uma pequena fada encerrada num mundo mágico e a lutar para alcançar a liberdade.
De manhã venho mais cedo à janela só para te ver meio escondida . Se tu soubesses como me despertas para o sol!
Saio para trabalhar mas não consigo paz durante o dia. Numa tremenda obsessão tudo me arrasta para a tua silhueta tentando imaginar como serás palpável nos meus dedos. Tudo é pura ilusão mas os efeitos dela têm consequências visíveis no meu corpo e na minha vida. Tento concentrar-me mas apenas anseio inquieto pelo passar das horas que parecem cada vez mais lentas e pesarosas.
Não sei como fugir ao fascínio que me despertas com o teu ar de menina mulher. Apesar do ar condicionado do escritório sinto que o suor faz uma travessia do meu corpo quente . Ao meu lado a tua presença idealizada torna o meu dia num abrasador deserto e pede-me suplicante que regresse a casa.
Finalmente a noite chega mas o meu tormento apenas se despiu de uma forma e assume agora outras vestes.
A lua insinua-se devagarinho por entre os cortinados onde te escondes. De repente és uma odalisca perturbante a dançar para mim e embora eu apenas me atreva a sonhar tal, é essa a ideia que me invade .
O vento traz-me o cheiro da maresia que embora fresca contribui para a minha alucinação.
Queria ser um super herói e voar até à tua janela. Pousar as minhas mãos nesse corpo encantado e fazer dele a minha morada. Nada me seria mais caro do que saber o nome da tua pele e aprender contigo a dança do amor.
Mas tu não me olhas e eu fujo assustado da janela que não me alivia o ardor que sinto.
Talvez fosse fácil procurar alguém que me fizesse desprender dessa teia que teceste sem o saberes. Já o tentei mas levei comigo a fome de ti que não pude atenuar noutros corpos.
Portanto prefiro a solidão das noites em que solto os gritos de prazer que te eram destinados , imaginando-te desnuda na minha cama.
Sei que não sou capaz de te abordar e que tu não te mostrarás para mim. Escondes-te e não me devolves o olhar. Fico nesta ansiedade e desespero e torno-me insano a cruzar noites de insónia.
As nossas janelas paralelas quase chegaram a ser tangentes.  Mas não consegui ser um Romeu a falar-te ao coração e portanto elas nunca serão secantes. Tenho de fugir daqui, desta casa, desta janela. Tu jamais serás minha.


© Margarida Piloto Garcia

© Quadro de Bogdan Prystrom