Ela
Vejo-te da
minha janela, quando o sol se descobre numa letargia que parece apaziguar os
meus anseios. Ele chega de mansinho embrulhado numa estranha neblina matinal e
entrega-se a um ritual sem pressas.
Tu não. Vejo-te assomar de supetão à janela e
expandires-te num abraço à alvorada. Escondida no cortinado esvoaçante desenho
com os olhos cada centímetro da tua pele. Não sei bem porque o faço . Apenas
sei que após a primeira vez, tudo se transformou num hábito que me foi viciando
e tornando cada vez mais cativa de ti.
Tudo em ti é de uma velocidade quase dançada, como
se fosses uma chita a correr na pradaria ou um vulcão a irromper na paisagem.
Encerro-me de olhos fechados no teu abraço ao sol e
o calor do dia atinge-me em cheio como uma pancada surda mas grávida de prazer.
Passas as mãos pelo cabelo que brilha nas últimas
gotas de água que lhe deixaste ficar. Quase lhe posso sentir o aroma e entretenho-me
a saboreá-lo na língua e nos lábios, ao mesmo tempo que um calafrio me lembra
que é necessário regressar à realidade .
Tem sido difícil fazê-lo desde o dia em que chegaste
e ocupaste a janela do lado.
Passei a monitorizar as tuas vindas à janela como se
eu fosse um pássaro atento e vigilante na procura do valioso alimento. E tu és
tal. Enches os meus dias da perfeição com que te revestes aos meus olhos. Umas
vezes és um deus nórdico, outras um cavaleiro mítico, mas sempre tens algo que
foge à rotineira classificação de humano.
Mas sei que o és porque te sinto daqui. O teu cheiro
chega invasivo mas sedutor e eu de gaivota curiosa passo rapidamente a ave de
rapina, os olhos brilhando na predatória busca da presa.
Mas as noites são ainda as piores horas que o dia me
traz.
Chegas e a lua escorre pelo teu corpo desenhando-te
e esculpindo-te. Ansiosamente seguro o meu despudorado arfar enquanto te
debruças, os olhos a sondar a noite.
As minhas mãos são gatunos a roubar o silêncio do
meu corpo, intrusos a explorar a solidão. Dançam-me no corpo loucas e vorazes e
empurram-me de encontro à janela numa posse quase agonizante.
Tu nada sabes destes meus pensamentos e sentires.
Nunca me olhaste ou sorriste. A ti basta-te existir nessa janela enquanto me
fazes e desfazes ao longo das horas em que nela te debruças.
Eu não sou capaz de me furtar à paralisia que me
tolhe . Engasgado na garganta está mais do que um olá. Está um grito rude que
me assola, a rasgar toda a sensatez e a
despir-me de tudo o que em mim é postiço e imposto.
Sei que vou morrer de sede por não te beber os
lábios e ficar cega de tanto te olhar. Tu jamais serás meu.
Ele
Quando vim para aqui morar reparei de imediato em
ti. Senti-te pequena como um pardal mas
explosiva no modo como o teu corpo se mexe.
Escondes-te atrás dos translúcidos cortinados mas eu
consigo descobrir-te quando o sol num passe mágico te lança um dos seus raios.
Envolta neles pareces uma pequena fada encerrada num mundo mágico e a lutar
para alcançar a liberdade.
De manhã venho mais cedo à janela só para te ver
meio escondida . Se tu soubesses como me despertas para o sol!
Saio para trabalhar mas não consigo paz durante o
dia. Numa tremenda obsessão tudo me arrasta para a tua silhueta tentando
imaginar como serás palpável nos meus dedos. Tudo é pura ilusão mas os efeitos
dela têm consequências visíveis no meu corpo e na minha vida. Tento
concentrar-me mas apenas anseio inquieto pelo passar das horas que parecem cada
vez mais lentas e pesarosas.
Não sei como fugir ao fascínio que me despertas com
o teu ar de menina mulher. Apesar do ar condicionado do escritório sinto que o suor
faz uma travessia do meu corpo quente . Ao meu lado a tua presença idealizada
torna o meu dia num abrasador deserto e pede-me suplicante que regresse a casa.
Finalmente a noite chega mas o meu tormento apenas
se despiu de uma forma e assume agora outras vestes.
A lua insinua-se devagarinho por entre os cortinados
onde te escondes. De repente és uma odalisca perturbante a dançar para mim e
embora eu apenas me atreva a sonhar tal, é essa a ideia que me invade .
O vento traz-me o cheiro da maresia que embora
fresca contribui para a minha alucinação.
Queria ser um super herói e voar até à tua janela.
Pousar as minhas mãos nesse corpo encantado e fazer dele a minha morada. Nada
me seria mais caro do que saber o nome da tua pele e aprender contigo a dança
do amor.
Mas tu não me olhas e eu fujo assustado da janela
que não me alivia o ardor que sinto.
Talvez fosse fácil procurar alguém que me fizesse
desprender dessa teia que teceste sem o saberes. Já o tentei mas levei comigo a
fome de ti que não pude atenuar noutros corpos.
Portanto prefiro a solidão das noites em que solto
os gritos de prazer que te eram destinados , imaginando-te desnuda na minha
cama.
Sei que não sou capaz de te abordar e que tu não te
mostrarás para mim. Escondes-te e não me devolves o olhar. Fico nesta ansiedade
e desespero e torno-me insano a cruzar noites de insónia.
As nossas janelas paralelas quase chegaram a ser
tangentes. Mas não consegui ser um Romeu
a falar-te ao coração e portanto elas nunca serão secantes. Tenho de fugir
daqui, desta casa, desta janela. Tu jamais serás minha.
© Margarida Piloto Garcia
© Quadro de Bogdan Prystrom
© Quadro de Bogdan Prystrom
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