Não, não cerres os olhos para não me
leres. Não te atrevas sequer a rasgar a folha sépia que encontrei para te
chamar à razão. Escolhi-a pela sua aparência nostálgica a lembrar outros
tempos, pelo seu toque esmaecido para melhor temperar a raiva.
Não deixes cair lágrimas amargas
diluindo a tinta azul da china com que a escrevi. Garanto-te que a escolhi num
espécie de namoro de outras eras, bucólico e primaveril.
Mas nada disso interessa. Agora aqui,
estamos apenas nós e quero que tenhas a coragem de ler estas palavras escritas
com força e mágoa.
Não te escapes de novo em malabarismos
vários e em piruetas de explicações. Não faças de tudo um circo. Não cries
raízes de desgraça, nem desistas das palavras. Não amarfanhes a voz, nem
emudeças os gestos em afectos bruscos.
Não, não e não.
O teu imperativo tem de ser um sim à
vida. Um sim canoro e estridente, uma viagem de boca escancarada a sugar
sangue-vida.
Sê tudo o que sabes e nunca uma bengala
ou uma migalha devorada pela voracidade da vida.
Lê o que te escrevo enquanto te olhas no
espelho rasgando as neblinas do passado.
Não, não é uma emboscada, nem uma astuta
ilusão, nem mesmo um impertinente passo
de dança. Falo-te da vida, essa meretriz tão amada e odiada, essa louca
espartilhada entre anos mastigados e outros levados num bater de asas e curvas
sem regresso.
Tens de te erguer e continuar. Não
importa se ela te cegou a estrada e te entornou os desejos no chão. Tu ainda
tens olhos para te estatelares ao comprido no amor e boca para gritares despenteadas
paixões. Tens mãos para rirem no corpo e atarem laços no coração.
Nestes anos, raras vezes me ouviste, ou
ouviste e não te deste ao trabalho de entender.
Recorri a todos os subterfúgios,
atrevendo-me a semear em ti todas as revoltas. Debateste-te e esmurraste muitas
vezes o pó dos dias numa loucura voraz e selvagem.
Mas saíste sempre arrepiado por entre
estreitas margens, a sorver o medo espesso de magoar os outros.
E tu?
Não és gente e carne e alma contrafeita?
Não és poema sem rimas? E tu?
Porque não rasgas os contratos e foges
dos vampiros que te emolduram como um anjo viciado?
Hoje, mesmo que te jogues no ar como um trapezista ébrio, mesmo
que percas os braços e as pernas, mesmo que nem os músculos, nem as veias, respondam aos apelos, não perderás o norte e
lerás o que escrevo.
Então o frio escorregará dos teus ombros
e os vendedores de banha da cobra tremerão antes de tentarem castrar-te o
destino.
Ainda é tempo. Ainda não gastaste as 7
vidas que um dia um gato te deu.
O delírio de um improvável céu azul
ainda se sustenta numa arquitectura frágil mas desperta.
Por isso, vais ler-me e erguer-te como
os guerreiros fazem, porque as batalhas não se ganham em acomodadas camas.
Muita força da sempre tua
Consciência
© Margarida Piloto Garcia in "CARTAS"-publicado por LUA DE MARFIM -2014
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