Nem metade, nem três quartos de um
amor. O que sempre quis foi um amor por inteiro. Sabes, aquele amor
que imaginava no meio das giestas bravas que cercavam a casa, os teus
cabelos inclinados sobre mim, o silêncio a gritar o zumbido das
abelhas, os sentidos a montarem armadilhas e as tuas mãos a
orquestrarem sinfonias. A urgência de amar mordia a tarde calada e
eu engasgava os gemidos que cresciam no peito.
O
que sempre quis foi um amor inteiro. Nada de passos gelados a fazerem
gemer o soalho antigo, nem noites disfarçadas de lancinantes
esperas, o medo a deslizar das sombras e a cravar as unhas na cama
deserta. Eu a lembrar o estio a romper das janelas, o vento suão a
perpassar no meu corpo enquanto a tua voz cantava Fistful of love e
as tuas mãos peregrinavam a viola antes de se desmoronarem com
fingida ferocidade sobre mim.
Não
vale a pena chorar. Vem um algoritmo e apaga-te de vez as lágrimas,
encerra-te na distância e transforma o caos da paixão numa caixa
cinzenta e pardacenta. Nem todas as cartas de amor são felizes. A
prova está nesta que vou colando, letra após letra.
Criei
o hábito de sonhar. Antes eram sonhos de amor onde corria o risco de
me acidentar. Era um risco de morte feito de olhares negros
carregados dos beijos gulosos com que canibalizávamos as bocas. Era
tudo uma questão de sobrevivência, a incapacidade de conter o grito
e a compostura. Mas depois o engano cresceu no escuro e o calendário
enlouqueceu. Não há versos ou notas de música que o façam parar.
Não existem fórmulas mágicas ou passos de dança, capazes de fazer
desaparecer a desilusão.
Quantas
décimas tem um amor? Um amor inteiro feito da sedução da areia, do
cheiro da maresia, da rendição à vida sem esperar qualquer
absolvição.
Agora
a noite é densa, feita de um pesadelo recorrente. É difícil
respirar enquanto se pesa um coração. Quantos gramas para um amor
inteiro? Para o saber talvez seja preciso renegar as almas fraturadas
e sondar os filósofos da felicidade, aqueles que se embebedam de
estrelas e atravessam a vida cheios de certezas. Gostava de ser
assim. Talvez tenha sido assim, sem as ideias de fim de mundo que me
atravessam.
Continuo
a não aceitar, um meio amor, ou três quartos dele. Talvez seja
louca em exigir um amor inteiro, por isso não sei escrever cartas de
amor.
Afinal
o poeta tinha razão. Todas as cartas de amor são ridículas.
© Margarida Piloto Garcia-in III COLECTÂNEA DE CARTAS DE AMOR-"TRÊS QUARTOS DE UM AMOR"-publicado por CHIADO BOOKS-2020
© Foto de Josh Adamski
1 comentário:
Lindo blogue e conto de Natal!
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