terça-feira, 15 de julho de 2014

Um dia de cada vez





Está frio lá fora ou talvez seja ele que mirrou na carne de outrora. Veste-se lentamente porque cada gesto é um ritual que não pode esquecer, é um arrimo onde se encosta porque ainda precisa de continuar a viver.
O casaco pende-lhe dos ombros magros, como coisa emprestada a um homem diferente do que foi. Mas a face que o espelho lhe devolve, recusa essa pressa dos anos a correrem e a pisarem tudo numa fuga imparável. Quando se olha nunca está só. Ali no seu reflexo não se contam rugas nem desaires. É um homem trigueiro e jovem que lhe sorri trocista, mas que logo esconde esse vinco dos lábios e o troca por uma terna suavidade quando o vulto loiro e quase diáfano lhe estende a mão.
E ali está ela ao seu lado. Um mar nos olhos a embalá-lo e uma espécie de bater de asas a evolar-se dos lábios rosados.
Fecha os olhos e pensa que não pode demorar tanto tempo nem perder-se em divagações. O que nele é sonho tem de esperar, secretamente escondido no bolso da camisa. Agora precisa de ter âncoras a grudá-lo em cada passo que dá. Não se pode atrever a fugir, por um milímetro que seja, da realidade dos dias e das pequenas coisas.
Os pormenores são de uma importância esmagadora. O seu peso derruba-o muitas vezes mas nunca o esmaga. Levanta-se sempre, numa coragem renovada, mesmo que trema por fora e por dentro, no eterno receio que a morte o leve e a deixe sozinha.
Sai de casa e apanha o autocarro. Vai quase vazio e dá-lhe espaço para deixar os pensamentos à solta como se fossem papagaios de papel. Tudo o que tem são as memórias e esse facto é ainda mais cruel, porque não pode dividi-las nem partilhá-las. Pudesse ele dar-lhe, nem que fosse a lembrança daquele primeiro beijo, e seria feliz. Tivesse ele a pálida ilusão de que o seu olhar seria reconhecido e a sua mão aconchegada com certezas no seio morno, e tudo mudaria na vida, mesmo que lhe restasse pouca.
Era insuportável carregar sem ela o peso das memórias.
E depois, vinha-lhe aquele frio a agarrar-lhe os braços, sequioso do que nele era ainda vida, os cansaços esvaídos , as lágrimas nocturnas a escorrer em sulcos já lavrados. Morriam-lhe os delírios ainda palpáveis do corpo porque pensava nela. Mas não cedia à tentação porque era terrível saber o que ela nunca saberia . Só se admitia vazios a preencher, com tudo o que lhe dava. E era tão pouco, tão pouco!
Uma só memória lhe chegaria se lhe pudesse dar as outras. Encostar a sua testa à pálida e loira cabeleira e por osmose ser ele nela.
O autocarro pouco avança no trânsito que , não sabe porquê, se tornou caótico.
Não costuma ser assim àquela hora.
Há três anos que num fervor religioso faz aquele caminho. Três anos de mágoas e de solidão. Mais de mil dias numa corrida que não pode ganhar. Segundos eternos a reter memórias que não pode perder,  porque agora tem de as ter também por ela.
Tudo a dobrar, num apertado círculo, uma mó a moer a incerteza e a exigir que aguente inteiro.
A casa deixou de ser aconchegante e luminosa. Nas mesas os retratos falam com ele e contam-lhe histórias de uma amor infinito. Nada morreu , nem mesmo quando nela tudo foi ficando envolto em brumas voláteis.
Enquanto o autocarro se arranca à forçada imobilização, conta nas unhas partidas as vezes que construiu molduras para agarrar na memória do tempo os momentos a dois. Agora a memória é só sua e nem as molduras conseguem dar vida à que foi dela. Nos olhos dela existe um caminho tão vasto que não leva a nenhum lado. Uma eternidade tão vazia que preferia ser cego para não se debruçar naquele parapeito mortal.
Em casa pesa cuidadosamente cada passo dado. Do mais ínfimo ao mais complexo, tenta não se esquecer de nada e grava minuciosamente na mente, os gestos comezinhos do dia a dia.
Não tem o direito a falhas e pequenos erros. Tem em si uma geometria calculada , um cinzento robótico que lhe destrona os sonhos ainda por vir. Mas o único sonho que tem, prende-se com ela e com o frágil e silencioso medo de cada dia. Tudo o que deseja está para trás mas ele precisa de seguir em frente, mesmo que o faça cada vez mais num curvado declínio que lhe ameaça o equilíbrio.
Ninguém lhe atira uma jangada ou uma mera corda e nem as palavras são suficientes para o salvar. Apenas sabe que morreu mais um dia quando a casa vazia lhe enregela os ossos e os retratos se calam mudos e de órbitas vazias.
Finalmente o autocarro chega ao destino. Agarra pelos colarinhos a lentidão do passo e atravessa o portão da clínica. Açodado e com o coração a bater descompassado, foge ao medo de a saber na mesma, naquele anónimo estado de quem nada sabe e lembra.
Atravessa o jardim e perante o vulto envolto no xaile azul, tudo o mais é um mero tropeção da vida. Olha-a como da primeira vez. Cala-se nele o atrevimento da lamúria que ousou corroer-lhe a mente e desafiá-lo. Que mais pode desejar do que estar  perante ela , confortá-la e amá-la? Reaprender uma nova linguagem mesmo que um destino torto a tenha privado de saber quem é?
Experiencia aos poucos a urgência de a poder beijar e contar-lhe o amor que foi deles.
Que importa que nela tudo se silencie se ambos se podem amar mesmo assim, um dia de cada vez.



© Margarida Piloto Garcia in "LABIRINTOS DA MENTE"-publicado por Editora Papel D'Arroz 2016






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