segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A carta



Não, não cerres os olhos para não me leres. Não te atrevas sequer a rasgar a folha sépia que encontrei para te chamar à razão. Escolhi-a pela sua aparência nostálgica a lembrar outros tempos, pelo seu toque esmaecido para melhor temperar a raiva.
Não deixes cair lágrimas amargas diluindo a tinta azul da china com que a escrevi. Garanto-te que a escolhi num espécie de namoro de outras eras, bucólico e primaveril.
Mas nada disso interessa. Agora aqui, estamos apenas nós e quero que tenhas a coragem de ler estas palavras escritas com força e mágoa.
Não te escapes de novo em malabarismos vários e em piruetas de explicações. Não faças de tudo um circo. Não cries raízes de desgraça, nem desistas das palavras. Não amarfanhes a voz, nem emudeças os gestos em afectos bruscos.
Não, não e não.
O teu imperativo tem de ser um sim à vida. Um sim canoro e estridente, uma viagem de boca escancarada a sugar sangue-vida.
Sê tudo o que sabes e nunca uma bengala ou uma migalha devorada pela voracidade da vida.
Lê o que te escrevo enquanto te olhas no espelho rasgando as neblinas do passado.
Não, não é uma emboscada, nem uma astuta ilusão, nem mesmo um impertinente  passo de dança. Falo-te da vida, essa meretriz tão amada e odiada, essa louca espartilhada entre anos mastigados e outros levados num bater de asas e curvas sem regresso.
Tens de te erguer e continuar. Não importa se ela te cegou a estrada e te entornou os desejos no chão. Tu ainda tens olhos para te estatelares ao comprido no amor e boca para gritares despenteadas paixões. Tens mãos para rirem no corpo e atarem laços no coração.
Nestes anos, raras vezes me ouviste, ou ouviste e não te deste ao trabalho de entender.
Recorri a todos os subterfúgios, atrevendo-me a semear em ti todas as revoltas. Debateste-te e esmurraste muitas vezes o pó dos dias numa loucura voraz e selvagem.
Mas saíste sempre arrepiado por entre estreitas margens, a sorver o medo espesso de magoar os outros.
E tu?
Não és gente e carne e alma contrafeita? Não és poema sem rimas? E tu?
Porque não rasgas os contratos e foges dos vampiros que te emolduram como um anjo viciado?
Hoje, mesmo que te  jogues no ar como um trapezista ébrio, mesmo que percas os braços e as pernas, mesmo que nem os músculos, nem as veias,  respondam aos apelos, não perderás o norte e lerás o que escrevo.
Então o frio escorregará dos teus ombros e os vendedores de banha da cobra tremerão antes de tentarem castrar-te o destino.
Ainda é tempo. Ainda não gastaste as 7 vidas que um dia um gato te deu.
O delírio de um improvável céu azul ainda se sustenta numa arquitectura frágil mas desperta.
Por isso, vais ler-me e erguer-te como os guerreiros fazem, porque as batalhas não se ganham em acomodadas camas.

Muita força da sempre tua


Consciência



© Margarida Piloto Garcia in "CARTAS"-publicado por LUA DE MARFIM -2014  







sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Destinos paralelos




Ela

 Vejo-te da minha janela, quando o sol se descobre numa letargia que parece apaziguar os meus anseios. Ele chega de mansinho embrulhado numa estranha neblina matinal e entrega-se a um ritual sem pressas.
Tu não. Vejo-te assomar de supetão à janela e expandires-te num abraço à alvorada. Escondida no cortinado esvoaçante desenho com os olhos cada centímetro da tua pele. Não sei bem porque o faço . Apenas sei que após a primeira vez, tudo se transformou num hábito que me foi viciando e tornando cada vez mais cativa de ti.
Tudo em ti é de uma velocidade quase dançada, como se fosses uma chita a correr na pradaria ou um vulcão a irromper na paisagem.
Encerro-me de olhos fechados no teu abraço ao sol e o calor do dia atinge-me em cheio como uma pancada surda mas grávida de prazer.
Passas as mãos pelo cabelo que brilha nas últimas gotas de água que lhe deixaste ficar. Quase lhe posso sentir o aroma e entretenho-me a saboreá-lo na língua e nos lábios, ao mesmo tempo que um calafrio me lembra que é necessário regressar à realidade .
Tem sido difícil fazê-lo desde o dia em que chegaste e ocupaste a janela do lado.
Passei a monitorizar as tuas vindas à janela como se eu fosse um pássaro atento e vigilante na procura do valioso alimento. E tu és tal. Enches os meus dias da perfeição com que te revestes aos meus olhos. Umas vezes és um deus nórdico, outras um cavaleiro mítico, mas sempre tens algo que foge à rotineira classificação de humano.
Mas sei que o és porque te sinto daqui. O teu cheiro chega invasivo mas sedutor e eu de gaivota curiosa passo rapidamente a ave de rapina, os olhos brilhando na predatória busca da presa.
Mas as noites são ainda as piores horas que o dia me traz.
Chegas e a lua escorre pelo teu corpo desenhando-te e esculpindo-te. Ansiosamente seguro o meu despudorado arfar enquanto te debruças, os olhos a sondar a noite.
As minhas mãos são gatunos a roubar o silêncio do meu corpo, intrusos a explorar a solidão. Dançam-me no corpo loucas e vorazes e empurram-me de encontro à janela numa posse quase agonizante.
Tu nada sabes destes meus pensamentos e sentires. Nunca me olhaste ou sorriste. A ti basta-te existir nessa janela enquanto me fazes e desfazes ao longo das horas em que nela te debruças.
Eu não sou capaz de me furtar à paralisia que me tolhe . Engasgado na garganta está mais do que um olá. Está um grito rude que me assola, a rasgar toda a sensatez  e a despir-me de tudo o que em mim é postiço e imposto.
Sei que vou morrer de sede por não te beber os lábios e ficar cega de tanto te olhar. Tu jamais serás meu.

Ele

Quando vim para aqui morar reparei de imediato em ti. Senti-te pequena como um pardal  mas explosiva no modo como o teu corpo se mexe.
Escondes-te atrás dos translúcidos cortinados mas eu consigo descobrir-te quando o sol num passe mágico te lança um dos seus raios. Envolta neles pareces uma pequena fada encerrada num mundo mágico e a lutar para alcançar a liberdade.
De manhã venho mais cedo à janela só para te ver meio escondida . Se tu soubesses como me despertas para o sol!
Saio para trabalhar mas não consigo paz durante o dia. Numa tremenda obsessão tudo me arrasta para a tua silhueta tentando imaginar como serás palpável nos meus dedos. Tudo é pura ilusão mas os efeitos dela têm consequências visíveis no meu corpo e na minha vida. Tento concentrar-me mas apenas anseio inquieto pelo passar das horas que parecem cada vez mais lentas e pesarosas.
Não sei como fugir ao fascínio que me despertas com o teu ar de menina mulher. Apesar do ar condicionado do escritório sinto que o suor faz uma travessia do meu corpo quente . Ao meu lado a tua presença idealizada torna o meu dia num abrasador deserto e pede-me suplicante que regresse a casa.
Finalmente a noite chega mas o meu tormento apenas se despiu de uma forma e assume agora outras vestes.
A lua insinua-se devagarinho por entre os cortinados onde te escondes. De repente és uma odalisca perturbante a dançar para mim e embora eu apenas me atreva a sonhar tal, é essa a ideia que me invade .
O vento traz-me o cheiro da maresia que embora fresca contribui para a minha alucinação.
Queria ser um super herói e voar até à tua janela. Pousar as minhas mãos nesse corpo encantado e fazer dele a minha morada. Nada me seria mais caro do que saber o nome da tua pele e aprender contigo a dança do amor.
Mas tu não me olhas e eu fujo assustado da janela que não me alivia o ardor que sinto.
Talvez fosse fácil procurar alguém que me fizesse desprender dessa teia que teceste sem o saberes. Já o tentei mas levei comigo a fome de ti que não pude atenuar noutros corpos.
Portanto prefiro a solidão das noites em que solto os gritos de prazer que te eram destinados , imaginando-te desnuda na minha cama.
Sei que não sou capaz de te abordar e que tu não te mostrarás para mim. Escondes-te e não me devolves o olhar. Fico nesta ansiedade e desespero e torno-me insano a cruzar noites de insónia.
As nossas janelas paralelas quase chegaram a ser tangentes.  Mas não consegui ser um Romeu a falar-te ao coração e portanto elas nunca serão secantes. Tenho de fugir daqui, desta casa, desta janela. Tu jamais serás minha.


© Margarida Piloto Garcia

© Quadro de Bogdan Prystrom