Há muitos anos, era parte de mim a lua pendurada no
teu corpo. Tu ias e vinhas na noite, num tropel que nem os cavalos do sonho
conseguiam acompanhar. Nada era realidade a vestir-me o corpo e apenas o medo
penteava os meus cabelos.
Tu seguias imune aos meus apelos, orgulhoso e
falsamente convencido de que a estrada do luar era só tua. Agarrada a ténues
esperanças, abri-te os braços vezes sem conta, na vã tentativa de que eles
fossem abrigo e casulo, fossem caminho e cama de amores lunares. Mas a teia dos
segredos a palpitar nos olhos, sempre nos enredou e os lobos a morderem a pele
numa luciferina sedução, foram sempre vencedores.
Hoje os dedos doem-me quando toco o luar e me tento
demorar na pele do teu corpo.
É em quarto minguante que a lua te recorta,
suspirando maresias insensatas e insuspeitas. Nada consigo ouvir, os sons
enclausurados num outro universo, nada consigo ver, cega pelas mentiras embrulhadas
em papel colorido. E as palavras que poderia dizer ou gritar, calo-as porque
perdi as asas de gaivota ao cruzar o último céu.
Com o teu lado escuro tentas agarrar-me num abraço
luarento, os olhos postos, não em mim, mas na feiticeira iluminada numa
gritante noite azul.
Mas algo se recolhe em segredo, refugiando-se dos
gestos gastos e mínimos. Não tenho mais desejos grávidos de ti porque os
isentaste de mim.
Agora, só desejo guardar aquele lugar mágico , inviolado e secreto que
nunca corrompeste.
Toma para ti o que com esqueléticas razões julgaste
ser teu. Deixa-me apenas o mundo da lua.
Está frio lá
fora ou talvez seja ele que mirrou na carne de outrora. Veste-se lentamente
porque cada gesto é um ritual que não pode esquecer, é um arrimo onde se
encosta porque ainda precisa de continuar a viver.
O casaco
pende-lhe dos ombros magros, como coisa emprestada a um homem diferente do que
foi. Mas a face que o espelho lhe devolve, recusa essa pressa dos anos a
correrem e a pisarem tudo numa fuga imparável. Quando se olha nunca está só.
Ali no seu reflexo não se contam rugas nem desaires. É um homem trigueiro e
jovem que lhe sorri trocista, mas que logo esconde esse vinco dos lábios e o
troca por uma terna suavidade quando o vulto loiro e quase diáfano lhe estende
a mão.
E ali está
ela ao seu lado. Um mar nos olhos a embalá-lo e uma espécie de bater de asas a
evolar-se dos lábios rosados.
Fecha os
olhos e pensa que não pode demorar tanto tempo nem perder-se em divagações. O
que nele é sonho tem de esperar, secretamente escondido no bolso da camisa.
Agora precisa de ter âncoras a grudá-lo em cada passo que dá. Não se pode
atrever a fugir, por um milímetro que seja, da realidade dos dias e das
pequenas coisas.
Os pormenores
são de uma importância esmagadora. O seu peso derruba-o muitas vezes mas nunca
o esmaga. Levanta-se sempre, numa coragem renovada, mesmo que trema por fora e
por dentro, no eterno receio que a morte o leve e a deixe sozinha.
Sai de casa e
apanha o autocarro. Vai quase vazio e dá-lhe espaço para deixar os pensamentos
à solta como se fossem papagaios de papel. Tudo o que tem são as memórias e
esse facto é ainda mais cruel, porque não pode dividi-las nem partilhá-las.
Pudesse ele dar-lhe, nem que fosse a lembrança daquele primeiro beijo, e seria
feliz. Tivesse ele a pálida ilusão de que o seu olhar seria reconhecido e a sua
mão aconchegada com certezas no seio morno, e tudo mudaria na vida, mesmo que
lhe restasse pouca.
Era
insuportável carregar sem ela o peso das memórias.
E depois,
vinha-lhe aquele frio a agarrar-lhe os braços, sequioso do que nele era ainda
vida, os cansaços esvaídos , as lágrimas nocturnas a escorrer em sulcos já
lavrados. Morriam-lhe os delírios ainda palpáveis do corpo porque pensava nela.
Mas não cedia à tentação porque era terrível saber o que ela nunca saberia . Só
se admitia vazios a preencher, com tudo o que lhe dava. E era tão pouco, tão
pouco!
Uma só
memória lhe chegaria se lhe pudesse dar as outras. Encostar a sua testa à
pálida e loira cabeleira e por osmose ser ele nela.
O autocarro
pouco avança no trânsito que , não sabe porquê, se tornou caótico.
Não costuma
ser assim àquela hora.
Há três anos
que num fervor religioso faz aquele caminho. Três anos de mágoas e de solidão. Mais
de mil dias numa corrida que não pode ganhar. Segundos eternos a reter memórias
que não pode perder, porque agora tem de
as ter também por ela.
Tudo a
dobrar, num apertado círculo, uma mó a moer a incerteza e a exigir que aguente
inteiro.
A casa deixou
de ser aconchegante e luminosa. Nas mesas os retratos falam com ele e
contam-lhe histórias de uma amor infinito. Nada morreu , nem mesmo quando nela
tudo foi ficando envolto em brumas voláteis.
Enquanto o
autocarro se arranca à forçada imobilização, conta nas unhas partidas as vezes
que construiu molduras para agarrar na memória do tempo os momentos a dois.
Agora a memória é só sua e nem as molduras conseguem dar vida à que foi dela.
Nos olhos dela existe um caminho tão vasto que não leva a nenhum lado. Uma
eternidade tão vazia que preferia ser cego para não se debruçar naquele
parapeito mortal.
Em casa pesa
cuidadosamente cada passo dado. Do mais ínfimo ao mais complexo, tenta não se
esquecer de nada e grava minuciosamente na mente, os gestos comezinhos do dia a
dia.
Não tem o
direito a falhas e pequenos erros. Tem em si uma geometria calculada , um
cinzento robótico que lhe destrona os sonhos ainda por vir. Mas o único sonho
que tem, prende-se com ela e com o frágil e silencioso medo de cada dia. Tudo o
que deseja está para trás mas ele precisa de seguir em frente, mesmo que o faça
cada vez mais num curvado declínio que lhe ameaça o equilíbrio.
Ninguém lhe
atira uma jangada ou uma mera corda e nem as palavras são suficientes para o
salvar. Apenas sabe que morreu mais um dia quando a casa vazia lhe enregela os
ossos e os retratos se calam mudos e de órbitas vazias.
Finalmente o
autocarro chega ao destino. Agarra pelos colarinhos a lentidão do passo e
atravessa o portão da clínica. Açodado e com o coração a bater descompassado,
foge ao medo de a saber na mesma, naquele anónimo estado de quem nada sabe e
lembra.
Atravessa o
jardim e perante o vulto envolto no xaile azul, tudo o mais é um mero tropeção
da vida. Olha-a como da primeira vez. Cala-se nele o atrevimento da lamúria que
ousou corroer-lhe a mente e desafiá-lo. Que mais pode desejar do que estar perante ela , confortá-la e amá-la? Reaprender
uma nova linguagem mesmo que um destino torto a tenha privado de saber quem é?
Experiencia
aos poucos a urgência de a poder beijar e contar-lhe o amor que foi deles.
Que importa
que nela tudo se silencie se ambos se podem amar mesmo assim, um dia de cada
vez.
Enleio as mãos no cabelo ressuscitando um antigo
formigueiro nos dedos. Sigo caminho rumo aos lábios, sentindo-lhes a textura
suculenta. Divertida, olho para o espelho onde aquela mulher, real, mas cheia
de magia, me provoca e com um piscar de olho inusitado e burlesco, me seduz.
Como adoro perceber que há um corpo curvilíneo,
cingido num vestido cor de céu a ocultar estrelas!
Rodopio num louco devaneio, o corpo em chamas, a
mente como uma ave liberta do cativeiro. Tenho ondas, ora salgadas, ora doces,
a percorrerem-me como um tsunami.
Atiro-me para cima da cama, jogando os sapatos
vermelhos de salto agulha pelo ar. As meias gritam-me nas pernas e a lingerie
ousada que só eu vi, canta-me um jazz melódico, rouco e lânguido.
De repente apetece-me gritar e expulsar a outra que
eu era. Vestida de modo sorumbático, cabelo apanhado, um corpo a fingir-se
morto e enlutado. Uma mulher-sombra, pacata, uma espécie de rato pardacento.
Era isso que eu era? Sou isto que sou?
Sempre me afundei nos livros e resguardei em
retaguardas, náufraga a nadar violentamente em busca de terra firme. Nunca a
alcancei porque há sempre um samurai implacável a traçar-me caminhos.
Estranho que a Teresa me tivesse escolhido para a
substituir hoje. Claro que primeiro recusei. Como transformar-me no que não
sou? Numa mulher enigmática, elegante, vibrante de sensualidade? Mas a Teresa
foi tão persistente! Afinal era apenas um almoço de negócios onde teria de
entregar projetos que conheço mas de onde nunca emerjo como resplandecente
borboleta. Esse é o papel dela neste nosso teatrinho diário.
Curiosamente, esta mulher de cinza, escondida de
todos, fechada num casulo, aceitou. E o pó de fadas que agora sinto a
espalhar-se pelo corpo e pelo sangue, começou a possuir-me.
Sentir-me admirada, poder conversar, olhar nos olhos
de outros sem esconder os meus, rir num riso quase cúmplice que me veio de
dentro e me brilhou no corpo como um arco-íris, foi um prazer quase dissoluto.
Foi febrilmente orgásmica a satisfação com que me
penteei e vesti com roupas que nunca usara. Não pretendi seduzir ninguém,
apenas a mim.
E aqui estou
eu, numa embriaguez de sentidos e sentimentos. A Helena de ontem não é aquela
mulher que vislumbrei no espelho e que agora se estende voluptuosa na cama.
No fim de um dia onde cada minuto me mordeu a pele,
já não sei quem sou.