Tapas os olhos para não veres e os ouvidos
para não ouvires. Cerras a mente ao murmúrio em zoada. A noite sem dormir,
deixou um buraco e um cinzento de palavras. Só precisas de enrolar o corpo num
raio de sol e esbanjar as cores do arco íris numa gargalhada.
E é assim que um dia acordas, num
desassossego embrulhado como se te escrevessem ao contrário ou te costurassem
do avesso.
Achas que é hoje o dia, o tal onde pensas ter
a coragem para o derradeiro salto, para transpor a fronteira da última sanidade
, para sair das marcas gastas e vincadas à tua volta. Não há abraços de solidão
nem felicidades bonitas e baratas. Contas feitas à vida, há que dar um pontapé no
caminho enferrujado e dizer que é agora.
E confessas ou tentas confessar.
No teu ombro direito um anjinho diáfano
semicerra os olhos e faz beicinho. Tenta convencer-te a dizeres coisas doces,
porque afinal és pura e de uma inocência negada à vida. És apenas louca como um
artista cativo de um admirável toque de génio, ou um pássaro em delírio a
carregar o céu nas asas.
Nada tens para confessar a não ser a vida mal
amada do dia a dia , cheia de metáforas (ou serão mentiras?), a atreverem-se a colorir
a existência azeda.
Mas no teu ombro esquerdo, um diabinho
elegante e melífluo não te deixa em paz. Belisca-te, desce pelo pescoço e
aloja-se entre os seios a desafiar-te. Emudeces os lábios no ar morno, espesso
da dúvida galopante.
Afinal,
um passo dado na incógnita do medo a arriscar uma caminhada feita de um querer fecundo, seria como atirares-te
do alto do penhasco da vida.
Quem sabe não teria o gosto de uma lágrima
pintada e escorrida, nesse corpo que quer mas não lembra!
E entre o pedido urgente e requebrado do
diabinho lânguido de voz íntima e rouca e o balbuciar doce do anjinho aflito,
abanas e alquebras , o instinto a tremer nas pernas e umas nuvens de insanidade a corroerem todas
as intenções de seres razoável.
Mas se confessas, se te atreves, se te
aventuras a rasgar a carne e a mostrar os ossos sem suavidade, corres o risco
de partir as asas, de despenteares a alma com o destino ao pescoço.
Porque não é fácil mastigares os pensamentos
que te cruzam e cuspi-los assim de uma rajada, numa onda metálica a chiar
ferrugens de tanto estarem presos.
Vais falar dos dias e dos instintos selvagens
que te crescem nos dedos, das palavras a brilhar saliva, que te apetece
ausentar da boca?
Ou vais confessar as noites bravias dos
fôlegos sem gaguez, onde não há delicadezas e tudo se perde em verdades ébrias?
Confessa então as certezas que não tens
dentro de ti mas que rugem como feras
esfaimadas, diz das palavras obscenas e cruas, placebo do amor não feito. De
olhos fechados sussurra a tua condição de mulher e as piruetas que o teu corpo sonha
no enlace que veste a pele de um homem.
Abre a Caixa de Pandora e conjuga o verbo
confessar em todos os tempos. Porque
afinal, se podes assegurar os pecados (serão?) de um passado e presente, por
certo o futuro não será diferente, ainda
que cada vez mais se faça tarde e os silêncios sejam densos e de solitárias
travessias.
Escolhe
de uma vez por todas se queres ficar acorrentada a esse anjo certinho e
de fragrância obscura ou por fim abraçar o diabo real que nada mais é que a tua
natureza de mulher .
Olhas-te ao espelho e tens lábios ceifados
pelo rubor de um beijo e uma impronunciável emoção a criar seiva nos reflexos
escondidos do teu corpo.
E portanto... confessas, porque mesmo que temas a realidade, o medo é
onde vais para aprender.
© Margarida Piloto Garcia in- " Confissões " - publicado por LUA DE MARFIM EDITORA-2014
© Pintura de Charles Webster Hawthorne
3 comentários:
Belíssimo.
Profundo e tocante.
Parabéns pelos textos. Um abraço
"...o medo é onde se aprende..."Este teu poema é uma mensagem tão forte,tão forte para os que conseguem viver com a cobardia....
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