domingo, 21 de setembro de 2014

Confissão





Tapas os olhos para não veres e os ouvidos para não ouvires. Cerras a mente ao murmúrio em zoada. A noite sem dormir, deixou um buraco e um cinzento de palavras. Só precisas de enrolar o corpo num raio de sol e esbanjar as cores do arco íris numa gargalhada.
E é assim que um dia acordas, num desassossego embrulhado como se te escrevessem ao contrário ou te costurassem do avesso.
Achas que é hoje o dia, o tal onde pensas ter a coragem para o derradeiro salto, para transpor a fronteira da última sanidade , para sair das marcas gastas e vincadas à tua volta. Não há abraços de solidão nem felicidades bonitas e baratas. Contas feitas à vida, há que dar um pontapé no caminho enferrujado e dizer que é agora.
E confessas ou tentas confessar.
No teu ombro direito um anjinho diáfano semicerra os olhos e faz beicinho. Tenta convencer-te a dizeres coisas doces, porque afinal és pura e de uma inocência negada à vida. És apenas louca como um artista cativo de um admirável toque de génio, ou um pássaro em delírio a carregar o céu nas asas.
Nada tens para confessar a não ser a vida mal amada do dia a dia , cheia de metáforas (ou serão mentiras?), a atreverem-se a colorir a existência azeda.
Mas no teu ombro esquerdo, um diabinho elegante e melífluo não te deixa em paz. Belisca-te, desce pelo pescoço e aloja-se entre os seios a desafiar-te. Emudeces os lábios no ar morno, espesso da dúvida galopante.
 Afinal, um passo dado na incógnita do medo a arriscar uma caminhada  feita de um querer fecundo, seria como atirares-te do alto do penhasco da vida.
Quem sabe não teria o gosto de uma lágrima pintada e escorrida, nesse corpo que quer mas não lembra!
E entre o pedido urgente e requebrado do diabinho lânguido de voz íntima e rouca e o balbuciar doce do anjinho aflito, abanas e alquebras , o instinto a tremer nas pernas  e umas nuvens de insanidade a corroerem todas as intenções de seres razoável.
Mas se confessas, se te atreves, se te aventuras a rasgar a carne e a mostrar os ossos sem suavidade, corres o risco de partir as asas, de despenteares a alma com o destino ao pescoço.
Porque não é fácil mastigares os pensamentos que te cruzam e cuspi-los assim de uma rajada, numa onda metálica a chiar ferrugens de tanto estarem presos.
Vais falar dos dias e dos instintos selvagens que te crescem nos dedos, das palavras a brilhar saliva, que te apetece ausentar da boca?
Ou vais confessar as noites bravias dos fôlegos sem gaguez, onde não há delicadezas e tudo se perde em verdades ébrias?
Confessa então as certezas que não tens dentro de ti mas que rugem  como feras esfaimadas, diz das palavras obscenas e cruas, placebo do amor não feito. De olhos fechados sussurra a tua condição de mulher e as piruetas que o teu corpo sonha no enlace que veste a pele de um homem.
Abre a Caixa de Pandora e conjuga o verbo confessar em todos os tempos.  Porque afinal, se podes assegurar os pecados (serão?) de um passado e presente, por certo o futuro não será diferente,  ainda que cada vez mais se faça tarde e os silêncios sejam densos e de solitárias travessias.
Escolhe  de uma vez por todas se queres ficar acorrentada a esse anjo certinho e de fragrância obscura ou por fim abraçar o diabo real que nada mais é que a tua natureza de mulher .
Olhas-te ao espelho e tens lábios ceifados pelo rubor de um beijo e uma impronunciável emoção a criar seiva nos reflexos escondidos do teu corpo.
E portanto... confessas,  porque mesmo que temas a realidade, o medo é onde vais para aprender.




© Margarida Piloto Garcia in- " Confissões " - publicado por LUA DE MARFIM EDITORA-2014


© Pintura de Charles Webster Hawthorne














3 comentários:

Unknown disse...

Belíssimo.
Profundo e tocante.

Maria Oliveira disse...

Parabéns pelos textos. Um abraço

vitor correia disse...

"...o medo é onde se aprende..."Este teu poema é uma mensagem tão forte,tão forte para os que conseguem viver com a cobardia....