Simplesmente aconteceste-me.
Havia já uma inquietude de sonhos no ar ligeiramente
morno do teatro. Num último frenesim as pessoas acomodavam-se nas cadeiras,
numa mistura exótica de aromas e hálitos.
Sentei-me, ou melhor, deixei que o veludo vermelho
me envolvesse o corpo numa carícia quente e entorpecedora. Mergulhei dispersa
nos murmúrios que me cercavam, num antecipado gozo pelo espetáculo.
Não sei que ardências desabrochavam naquele dia em
mim! Quando penso nisso vêm-me à cabeça feitiços ancestrais, origem de luxúrias
inauditas. Corria nas minhas veias um fluxo estranho, uma febre esdrúxula e
galopante a deixar-me a pele quase a gritar.
Tu surgiste minutos antes de tudo começar e foi como
se te tivesse inventado na hora, à
medida dos meus desejos e da minha fome.
Sentaste-te deixando vago o lugar entre os dois e
nesse instante fugaz cruzaste o teu olhar com o meu. O ar à minha volta
tornou-se rarefeito e o vestido preto que envergava apertou-me o corpo num
amplexo bravio. Trouxe saliva aos lábios numa vã tentativa de os amaciar. Mas
eles já tinham ânsias rebeldes e uma aflitiva dependência dos teus.
O espetáculo começou. Os tangos argentinos plenos de
chamas de uma Buenos Aires quente e apaixonada, as milongas primitivas e
ritmadas, cresciam e lambuzavam a imaginação, incendiando o palco.
Deixei-me levar pela magia dos corpos e da música, o
coração a galopar frenético no meio das notas do bandonéon.
Entre dois passos de corte e uma media vuelta,
olhámos um para o outro separados pela estranha barreira da cadeira ainda
vazia.
Desviei o meu como corça aflita, apercebendo-me cada
vez mais do que me provocavas.
Os saltos e os tacões ecoavam no palco e agora era
sobre o meu corpo, de uma nudez de seda
branca, que dançavam. Os pés dos bailarinos marcavam nele os tempos e os
enlaces, mas eu apenas sentia a tua boca, viva e suculenta, a devorar-me como
fera em cio.
A música carregava no ventre, quase a parir, paixões
incontroláveis.
No meu lugar, eu tinha a certeza que brilhava num
calamitoso apelo espartilhado pelo vestido.
O arco do violino tangia-me, expondo-me em carne
viva às emoções e ao prazer que eu sentia que viriam da tua boca pressurosa e
faminta, das tuas pestanas longas a pintarem-me em pinceladas diáfanas.
No palco a coreografia atingia um ponto alto, numa
pose de machos a seduzirem fêmeas e a
vergá-las à sua vontade num último alento. Nesse momento a minha boca
entreabriu-se para deixar fugir o resto de um grito meio amordaçado que se
perdeu no aplauso do público.
O intervalo chegou e as luzes acres e brancas
banharam o teatro e isolaram-me numa aridez crua.
Fiquei sem saber se me devia levantar e misturar com
os outros, se ficar ali escondida naquele baluarte vermelho. O problema era
pensar no que tu farias também e no que eu queria exatamente. Mas sentia-me
febril, esgotada, húmida e palpitante e foi nessa pressa que me ergui, as
pernas trémulas a tocarem-se e a despertarem ainda, aqui e ali, uma faísca ao
longo das coxas.
Durante aqueles minutos tentei apaziguar o meu mar
interior, a minha epidérmica falta de inocência. Num estranho batismo aspergi
água fria nos pulsos, na cara, na gota de suor que descia como réptil no meio
dos meus seios. Não me reconhecia no espelho, rosada de um prazer impudico e
violentador.
Quando voltei à sala não te vi e respirei fundo
acalmando os meus anseios.
O espetáculo recomeçou e a tua cadeira continuou
desocupada. Agora a inquietação era flor de cardo, desespero a criar raiz,
dúvida feita cadafalso.
Gardel soava ebulindo os corpos vestidos de negro e
vermelhos inflamados.
E foi nesse momento que o teu perfume se introduziu
em mim, invasivo, pungente, quase promíscuo de tanta sexualidade arrasadora.
Sem me aperceber ocuparas o lugar a meu lado e o teu perfil desenhava uma
fronteira que eu queria transgredir.
Os meus joelhos nus e desvendados tremeram.
Agora cada
passo do tango, os cortes, as cruzadas, eramos nós que os dançávamos,
sincopados, carentes e predatórios.
Baixei os olhos para as tuas mãos, belas e
poderosas, mãos de pianista, suaves mas viris. Imaginei-as capazes de tocar em
mim todas as sinfonias e sonatas.
Presa às imagens que despudoradamente idealizava, o
leve toque do teu braço lançou-me numa espiral sem retorno. Às 120 batidas da
dança, respondia o meu corpo numa corrida que as superava.
Alienada num
interno desvario desejava mais do que nunca o poder da tua boca a desvendar-me
em estocadas e as aranhas das tuas mãos prendendo-me numa teia, enquanto escorregavas na seda do meu vestido.
Antes que a pequena morte chegasse e me derrubasse
numa síncope inaudita, levantei-me e fugi para a rua a abraçar o frio e a exorcizar os meus
demónios.
Mas eu acontecera-te tal como tu a mim.
Por isso, dez anos passados, ambos celebramos aquilo
a que não queremos dar nome, dançando um tango argentino.
© Margarida Piloto Garcia in- " SEDUZ-ME " -publicado por PASTELARIA ESTÚDIOS EDITORA-2014
© Foto de Alfredo Ventura Sousa, concebida a partir do texto.
1 comentário:
Gostei muito de como escreve.
Vou passar a seguir o seu blogue.
Gábi
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