segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Aconteceste-me







Simplesmente aconteceste-me.
Havia já uma inquietude de sonhos no ar ligeiramente morno do teatro. Num último frenesim as pessoas acomodavam-se nas cadeiras, numa mistura exótica de aromas e hálitos.
Sentei-me, ou melhor, deixei que o veludo vermelho me envolvesse o corpo numa carícia quente e entorpecedora. Mergulhei dispersa nos murmúrios que me cercavam, num antecipado gozo pelo espetáculo.
Não sei que ardências desabrochavam naquele dia em mim! Quando penso nisso vêm-me à cabeça feitiços ancestrais, origem de luxúrias inauditas. Corria nas minhas veias um fluxo estranho, uma febre esdrúxula e galopante a deixar-me a pele quase a gritar.
Tu surgiste minutos antes de tudo começar e foi como se te tivesse inventado na hora,   à medida dos meus desejos e da minha fome.
Sentaste-te deixando vago o lugar entre os dois e nesse instante fugaz cruzaste o teu olhar com o meu. O ar à minha volta tornou-se rarefeito e o vestido preto que envergava apertou-me o corpo num amplexo bravio. Trouxe saliva aos lábios numa vã tentativa de os amaciar. Mas eles já tinham ânsias rebeldes e uma aflitiva dependência dos teus.
O espetáculo começou. Os tangos argentinos plenos de chamas de uma Buenos Aires quente e apaixonada, as milongas primitivas e ritmadas, cresciam e lambuzavam a imaginação, incendiando o palco.
Deixei-me levar pela magia dos corpos e da música, o coração a galopar frenético no meio das notas do bandonéon.
Entre dois passos de corte e uma media vuelta, olhámos um para o outro separados pela estranha barreira da cadeira ainda vazia.
Desviei o meu como corça aflita, apercebendo-me cada vez mais do que me provocavas.
Os saltos e os tacões ecoavam no palco e agora era sobre o meu corpo, de uma  nudez de seda branca, que dançavam. Os pés dos bailarinos marcavam nele os tempos e os enlaces, mas eu apenas sentia a tua boca, viva e suculenta, a devorar-me como fera em cio.
A música carregava no ventre, quase a parir, paixões incontroláveis.
No meu lugar, eu tinha a certeza que brilhava num calamitoso apelo espartilhado pelo vestido.
O arco do violino tangia-me, expondo-me em carne viva às emoções e ao prazer que eu sentia que viriam da tua boca pressurosa e faminta, das tuas pestanas longas a pintarem-me em pinceladas diáfanas.
No palco a coreografia atingia um ponto alto, numa pose de machos a seduzirem  fêmeas e a vergá-las à sua vontade num último alento. Nesse momento a minha boca entreabriu-se para deixar fugir o resto de um grito meio amordaçado que se perdeu no aplauso do público.
O intervalo chegou e as luzes acres e brancas banharam o teatro e isolaram-me numa aridez crua.
Fiquei sem saber se me devia levantar e misturar com os outros, se ficar ali escondida naquele baluarte vermelho. O problema era pensar no que tu farias também e no que eu queria exatamente. Mas sentia-me febril, esgotada, húmida e palpitante e foi nessa pressa que me ergui, as pernas trémulas a tocarem-se e a despertarem ainda, aqui e ali, uma faísca ao longo das coxas.
Durante aqueles minutos tentei apaziguar o meu mar interior, a minha epidérmica falta de inocência. Num estranho batismo aspergi água fria nos pulsos, na cara, na gota de suor que descia como réptil no meio dos meus seios. Não me reconhecia no espelho, rosada de um prazer impudico e violentador.
Quando voltei à sala não te vi e respirei fundo acalmando os meus anseios.
O espetáculo recomeçou e a tua cadeira continuou desocupada. Agora a inquietação era flor de cardo, desespero a criar raiz, dúvida feita cadafalso.
Gardel soava ebulindo os corpos vestidos de negro e vermelhos inflamados.
E foi nesse momento que o teu perfume se introduziu em mim, invasivo, pungente, quase promíscuo de tanta sexualidade arrasadora. Sem me aperceber ocuparas o lugar a meu lado e o teu perfil desenhava uma fronteira que eu queria transgredir.
Os meus joelhos nus e desvendados tremeram.
 Agora cada passo do tango, os cortes, as cruzadas, eramos nós que os dançávamos, sincopados, carentes e predatórios.
Baixei os olhos para as tuas mãos, belas e poderosas, mãos de pianista, suaves mas viris. Imaginei-as capazes de tocar em mim todas as sinfonias e sonatas.
Presa às imagens que despudoradamente idealizava, o leve toque do teu braço lançou-me numa espiral sem retorno. Às 120 batidas da dança, respondia o meu corpo numa corrida que as superava.
 Alienada num interno desvario desejava mais do que nunca o poder da tua boca a desvendar-me em estocadas e as aranhas das tuas mãos prendendo-me numa teia,  enquanto escorregavas na seda do meu vestido.
Antes que a pequena morte chegasse e me derrubasse numa síncope inaudita, levantei-me e fugi para a rua  a abraçar o frio e a exorcizar os meus demónios.
Mas eu acontecera-te tal como tu a mim.
Por isso, dez anos passados, ambos celebramos aquilo a que não queremos dar nome, dançando um tango argentino.


© Margarida Piloto Garcia in- " SEDUZ-ME " -publicado por PASTELARIA ESTÚDIOS EDITORA-2014


© Foto de Alfredo Ventura Sousa, concebida a partir do texto.






1 comentário:

redonda disse...

Gostei muito de como escreve.
Vou passar a seguir o seu blogue.
Gábi