sábado, 13 de abril de 2013

Mala de viagem






Há muitos anos a vida cabia toda numa mala de viagem. Não daquelas que agora se usam. Apenas uma que levava na mão com toda a energia da sua juventude. Ana lembra-se que nela cabiam poucas coisas, a maior parte dos seus bens materiais, mas a bagagem dos sonhos era enorme.
Agora alonga o olhar num rio juncado de gaivotas. Traçam-lhe percursos, todos divagantes. Em cada voo um grito, em cada mergulho um sonho afogado. E o rio enche e vaza em perenes partos sempre anunciados. Ana passeia por entre o verde vibrante que a nova estação fez desabrochar. Busca flores, com a alma aflita de quem minera ouro, num eterno cansaço de novas descobertas. Agarra-se à terra buscando raízes que a prendam à vida e sonha, sonha sempre. Nos campos ou junto ao mar, sente-se um espírito livre. Enverga palavras borboleteantes, salpicos de ondas ou pérolas de orvalho matinal. Parte em todos os navios que despontam no horizonte ou enche-se do aroma fervilhante da terra, qual insecto laborioso.
Ana afunda o olhar na distância e sorri no prazer antecipado do reencontro. Ao longe Luísa caminha na sua direcção. Traz um passo masculino, quase um contra-natura do seu pequeno mas viçoso seio, ligeiramente descoberto no decote. Luísa é toda alvoroço, palavras atropeladas distribuídas por uns lábios finos que não denotam a paixão que a move. Ana abraça e beija a amiga. De imediato ela lhe conta os dois últimos meses. As doenças dos filhos, as crises conjugais, os últimos falhanços. Fala-lhe dos quês e dos porquês, das raivas pendentes, das noites adiadas, dos solavancos do corpo miúdo, das ânsias de fugas desmedidas, das loucuras ácidas e picantes. Ana ouve-a e no fundo, tenta resgatar os navios que deixou naufragar nos rios que atravessou com a mala de viagem. Nas palavras da amiga, descobre os gorjeios do pássaro aflito que a consome. Já nem escuta, os olhos a dançarem desejos e os lábios gotejando  paixões arrítmicas. Ambas se debatem,  presas numa gaiola onde estiolam os sonhos de uma juventude.
Tornaram-se amigas na descoberta de ritmos dançados. Luísa mais saltitante, Ana mais apaixonada. Habituaram-se pouco a pouco a debitar segredos, a partilhar mágoas. De vez em quando, fogem ao quotidiano e atiram-se como setas a matar a inércia e a letargia. Descobrem sempre um recanto onde pairam como fadas. Partilham um copo e desfazem os nós dos romances. Numa certa loucura, dançam com magia, trauteando versos que lhes expurgam as maldições.
Depois que a amiga parte, de volta ao trilho que traçou, Ana pensa que também precisa regressar, não à vida sonhada, mas àquela que foi fabricando em tantos anos de vida. Ajeita o vestido preto que lhe faz destacar o cabelo louro, quase branco. Sente-se bem nessa cor sombria que há anos se sentiu compelida a escolher. É quase um luto pelo corpo mal amado. Por baixo, a pele explode em vermelhos luxuriantes, em laranjas flamejantes que só pensam em mitigar a sede em encontros azuis. Sob o vestido um arco-íris, uma palpitação, uma boca mordida. Por fora, sombras e placidez, só traídas por uma curva do corpo, pela sensualidade do olhar, pelo modo como enrola o cabelo nos dedos suaves mas febris.
A tarde cai e um pôr-do-sol desenha o horizonte como uma tela de Van Gogh. Pensa numa música de Bethânia a gravar-lhe palavras esdrúxulas na alma magoada. Não quer pensar na casa sem flores nas janelas, na paisagem quase alienígena dos prédios que a cercam e lhe serram as pernas com que dança e as mãos com que acaricia. O encontro com a amiga já se esfumou, deixando-lhe a boca seca e um frio a lamber-lhe as margens do corpo.
Já não tem a mala onde cabiam os sonhos e os poucos pertences. Agora seriam precisos muitos caixotes para empacotar os valores, mas também os desperdícios de toda uma vida. A tralha substituiu toda a esperança e delapidou-a.
Pensa que caminha para um fim e a única coisa que desejava era um caminho de luz por onde seguir e uma mala de viagem carregada de sonhos


© Margarida Piloto Garcia in- "CORDA BAMBA"- publicado por PASTELARIA ESTUDIOS EDITORA-2012





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