sábado, 31 de janeiro de 2009

Adeus






A alegria
bateu-lhe com a porta.
Um som surdo
um tiro opaco
látego de chicote
ziguezagueante.
Deixou cair a lágrima
amarela
envelhecida.
Voltou as costas
e entorpecida
seguiu.


Margarida Piloto Garcia



quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Perdição





Ela olhou nos seus olhos
e soube-se perdida.
Lembrou palavras soltas,
cascatas sombreadas de desejo.
Fermentos de loucura incipiente roubaram-lhe a razão.
Cada letra lançou âncora, parasitou-a.
Deixou-se devorar e perdeu-se nos olhos.
Embrulhou-lhe os defeitos num novelo,
pintou como obra de arte a simples tela
e olhando-o nos olhos, sentiu-lhe os lábios mornos e o corpo quente.
O mar era um abismo de prazer
e os verdes e vermelhos golpeavam
fortes como frutos trincados.
Tentou não aceitar a perdição.
Ser mais forte, não ser igual a si.
Tivesse percebido e fugiria,
saltaria barricadas
verteria o seu sangue em escarlate manto
tingiria de negro a paixão.
Mas essa loucura dentro dela não tem travões,
não tem pregos que a prendam num caixão.

Corre desenfreada, cerra fileiras, desafia.

Mas...
Quando ela o sente,
já os cavalos galopam planície fora
rasgam telas manchadas de amarelo
ferem a música com rajadas de vento.
As mãos prendem e entrelaçam
e a voz canta-lhe ao ouvido o lânguido torpor tornado encantamento,
ferro em brasa marcando-lhe o sentir.

Já tentou ver-lhe a alma e vencer.
Mas perde sempre,
algemada nuns olhos feitos de palavras.



©  Margarida Piloto Garcia -in NÓS POETAS EDITAMOS-vol II-2013







terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Inocência





Sei que não é amor,
mas embrulhas os sentidos em gestos coloridos.
O teu sorriso troça da tristeza,
arranca o meu entre a provocação e a a candura.
Fico na expectativa do teu toque...
da tua timidez,
da quase juvenil carícia
na mescla sensual de que a revestes.
Sei que não é amor
mas atreves-te a quebrar tabus,
quando me desejas
me provocas
me queres de uma maneira que é só tua.
Sei que não é amor.
Nem mesmo é paixão.
Mas a loucura partilhada dos sentidos ,
existe no olhar trocado.
Sei que me perco nos beijos ora vorazes, ora subtis,
no abraço carente que me desnuda aos poucos.
Brincamos sem pudor
carentes desse amplexo desejado.
E embarcamos numa viagem feita de um desejo duro mas doce.
Nunca nos falta o riso
rolando como pérola.
Sei que não é amor
mas partilhas comigo um arco íris de emoções...
E o teu amplexo é forte e orvalhado de desejo.

Sôfrega é a satisfação linear,
sem perguntas, sem noites de espera,
sem algemas a roerem esfomeadas.

O corpo é um abrigo em que se esconde a alma.

Sei que não é amor
nem mesmo é paixão.
É talvez um não sei quê
que vai e vem
e deixa a vida intacta, virgem...à espera.


Margarida Piloto Garcia-in EROTISMVS-IMPULSOS E APELOS-publicado por ESPERA DO CAOS-2013



domingo, 25 de janeiro de 2009

Cântico de sereia





Se as frases são de encantos e magias,
não deixes de as dizer.
Conta-me a história dos murmúrios sussurrados,
vertidos no orvalho matinal,
lambidos na gota de suor.
O sal que me perfuma
traz as gaivotas até à minha pele.
Tanta salmoura é mar, é lágrima, é sémen de uma nova vida.
Abro-me em flor.
Carnuda.
Prenhe de desejo.
Sei ser um corpo ao vento
fustigada na ciclópica tempestade.
Não vergo mais.
Junco flexível.
Alma elástica em torvelinho.
Trauma pré-concebido.

E a tua voz é quente e abrasadora!
Bálsamo refrescante na minha alma,
ácido corrosivo no meu eu.
Dissolvo-me na contradição.
Mas essas frases inundantes,
deixam-me num porto á tua espera,
figurinha recortada em mítico horizonte.
Persigo sonhos mas o sono brinca com as horas
fá-las escorregar numa fiada de pérolas,
nacaradas, lisas, frescas na minha pele sedenta.

Se desfraldo essa vela,
rumo a um mar profundo.
Levo comigo a faca serrilhada,
desenhando runas ancestrais dentro de mim.
Sinto-lhe a ponta fria e metálica
mas abro-lhe os braços.
Cedo á carícia perfurante,
cega por uma dor que me tortura.
Aventuro-me sabendo-me por certo sem regresso.
Mas as sereias trazem as frases encantadas
e se as quiser beber...
não posso recusar a embriaguez.

Provo o teu elixir,
ambrósia divinal.
E espero-te na noite sem memória.
Oferto-te o imaginário
sabendo que nos olhamos de diferentes cais.
Mas se as frases são de encantos e magias,
não deixes de as dizer.

Margarida Piloto Garcia




sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Fado





Sombrias noites de luas escurecidas
sem luar.
Flashes de luzes despóticas
que impedem de te abraçar.
Traumas de vida...corrente,
na penumbra de um olhar.
E entre abraços e carícias
as caravelas percorrem, velas enfunando ao vento,
toda esta tremenda vida, ungida no verbo amar.
Amar, querer, possuir,
escolhos num mar de emoções.
O verbo é apenas um e vem de dentro de nós.
Algas enredam-te a vida
em tramas de renda negra.

E a ausência é uma paixão
de caminhos percorridos e de medos perturbados.

Coroas de espinhos despertam gemidos na tua voz,
cravados nas minhas mãos.
Falta o alento do ser-se,
um olhar que nos percorre.
São dedos frios que nos mentem,
que nos tolhem,
que nos colhem.
De tão fremente essa boca, destila raros sabores,
torna-se em mim um tormento, uma sina, uma voz.

É quase um fado vadio quando apareces na esquina.
Escondo envergonhada a voz que cala o grito voraz.
Explodem ondas no olhar,
ancoram almas perdidas.
Arquitectas Babilónias feitas de teias de aranha.
Rasgo-as em passos de dança
para as poder percorrer,
bebê-las em devaneios
sem nunca me saciar...

E quando as tardes me ferem
e me suspiram a alma, numa cadência de morte,
são as sombrias noites que te trazem
em minutos de desordem
num caos quase perfeito.



Margarida Piloto Garcia


Foto de Paolo Roversi



quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Datas





Datas são para relembrar.
Datas são para esquecer.
Dias, meses, anos,cronologia de vida.
Segredos preciosos como diamantes,
horas carpidas em rosários magoados,
anos repletos das maravilhas do desabrochar
dos suaves tremores
das feéricas paixões,
freios exteriores mas alma liberta.
Sonhos de uma ingenuidade pueril
tornada doentia nas dobras do tempo.
Datas expectantes, mal amadas na insatisfação da dura realidade.
Alegrias únicas, cintilações
tesouros guardados num imaginário a sépia.
Datas para esquecer em papéis rasgados,
imagens descoloridas e desfocadas,
sentimentos apanhados em teias de aranha
num sótão de fantasmas povoados.
Datas que nos deixam cicatrizes,
nos abrem e cortam com bisturis afiados.
Momentos em que a alma atinge a destruição,
os olhos fecham e arrancam de nós as já pálidas esperanças.
Dores paridas em sonhos estrebuchados,
abortos provocados pela tirania do que se sente.

E entrelaçado nesta renda de bilros,
traços misteriosos, alinhavos em obra incompleta.

Faço a contabilidade das datas,
Extraio do leito deste rio as poucas pepitas do ouro
que ousei resgatar à vida.
No fim olho-me no espelho
e não me reconheço nuns olhos de espanto sofrido.

Datas são para esquecer
e eu eternizo-me a lembrá-las
embrulhando em papel dourado e cintilante
o lixo que sobrou.


 Margarida Piloto Garcia





domingo, 18 de janeiro de 2009

Beijo









Colaste a tua boca à minha
e disseste segredos insondáveis.
Os teus olhos atearam fogos
devoraram, mesmerisaram e devolveram-me
à minha primitiva condição de mulher-Eva

Porque colaste a tua boca à minha
as nossas bocas são agora uma só.
Tenho o gosto dos teus lábios,
da tua língua
da tua saliva,
impregnado nos meus.
Sabor a pele, a mel
sabor a homem, a doçura.
Sabor forte, carente, sensual.

Quando colaste a tua boca à minha
o meu corpo morreu de encontro ao teu,
para logo reviver em ondas de paixão.
As carícias sonhadas não chegaram,
só mitigaram o vulcânico desejo.

Mas ao colares a tua boca à minha
a paixão partilhada foi tão demolidora,
que nos tornou pueris no medo da perder
e nos deixou nas almas um amor,
que por perfeito só pode ser sonhado.

Se ao colares a tua boca à minha
sentires que galopamos,
cavalos na bruma enevoada da manhã,
é porque o teu coração derreteu na lava ardente
e numa quase morte se fundiu no meu.

Depois de colares a tua boca à minha
os sonhos fugiram-me da alma.
Cruzaste os portões do impossível
reacendeste em labaredas
cada átomo do meu ser.
O meu corpo é um piano onde dedilhas
lânguidas e românticas sonatas,
galopantes e desvairadas sinfonias

Se quiseres colar a tua boca à minha
perceberás que o amor nem sempre é
como o sonhamos.
Ás vezes é simplesmente...melhor.


Margarida Piloto Garcia






quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Quero-te




Quero-te
porque te quero
E quero-te
assim mesmo
de olhos insones
com rugas dos desaires
de nostálgicos outroras.

Quero-te assim
porque te quero mesmo.

Não sei se os teus cabelos
trazem o cheiro da madrugada
nem se os teus olhos
são azuis ou verdes
ou de um castanho
que se transfigura.

Quero-te
no ocaso dos desejos
e na madrugada das paixões.
Espero a tua carícia
doce, terna
afago de criança.
Suplico o teu corpo
em vaivéns de desespero.

E quero-te
porque te quero
mesmo se tu não queres
mesmo que eu às vezes
esqueça que te quis
e quererei.
Quero as portas do teu sorriso
abertas, escancaradas
prontas a me sugar
em lábios desejosos.
Preciso do teu querer
em palavras desenhado
em relevos esculpido
em melodias interrompido.
Quero ouvir o bater das portas
quando a janela aberta,
sopra vento nos nossos corpos nus.

Olho-me no espelho
e pergunto-me porque te quero.
Mas é assim,
com escolhos semeados
com tormentas mal aplacadas
terramotos de destruição
com uivos na noite longa
com rasgares internos
a pulsar e a devorar
que eu te quero.
Vivo no vício deste querer
tentando loucamente
curar-me, diluir-me.
Cavalgo em batalhas sangrentas
lutando inexorável
contra as tramas da vida.
E interrogo-me na procura
dos porquês sem nexo.
Não és um cavaleiro
e eu não sou princesa.
A vida não se escreve
num ecrã de cinema.
Afasto-me de ti,
da crueldade com que medes
as horas e os dias.
Mas estendo-te a mão
de cada vez que atávicos sentimentos
me algemam.

Quero-te
porque te quero
E quero-te
assim mesmo.


Margarida Piloto Garcia.




terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Último mar







Nas rebeldes madeixas
de corvos de asas negras,
gotas de chuva serpenteiam.
Ela, é estatua de pedra silenciada
guarida onde a tristeza fez o ninho.
As gaivotas esvoaçam-lhe
a vida ressequida
e gritam-lhe
as lembranças do passado.
O mar lhe trouxe o amor
e o levou,
ardendo-lhe a alma
em pira fúnebre.
Os olhos tão cinzentos,
bordados de orlas escuras violáceas,
reflectem o sentir das ondas verdes
e das marés que lhe encheram o ventre.
Neles se escreveram
linhas tortas de vida,
como se de um manuscrito se tratasse.
Só a boca rubra
não esqueceu,
os rituais de amor tornado dor,
a saudade, as mágoas, o carpir.

Na espuma que lhe morde os pés
escreve devagarinho,
em letra antiga,
um último poema.



Margarida Piloto Garcia



Web-Art de Yolanda Botelho

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Estilhaços








Não consigo apanhar os estilhaços da tua ausência. Os meus sonhos rasgam cada centímetro da minha pele ferida. A realidade é uma faca afiada cortando e recortando espirais de dor num corpo que se quer suado. Espasmódicos requebros percorrem cada gota de suor, vertida numa manhâ eternamente recordada. Os lábios secam sem o beijo e recolhem a frivolidade de uma lágrima que teima em cair. Por mais que queira, sou subvertida pelos acordes saídos da tua viola e sinto esse gosto a loucura que me divide entre a vida e a morte.
Queria tanto apanhar esses estilhaços! Colá-los numa cópia insana do que foi! Mas olho-os e sinto-me vazia. A minha alma não passa de um rascunho amarrotado, no qual mal se notam os traços, de tão usada. Dobro as esquinas da vida e respiro os eflúvios de uma qualquer droga que amorfine. Multiplico, divido, somo, elevo a uma potência difícil de calcular, este vórtice que me domina. Mas quando mergulho nos teus escritos e na memória falada de um mar reflectido nos teus olhos, a minha vontade é uma folha caída ao sabor do vento acutilante.
Não sei unir estilhaços porque não deviam existir estilhaços .
Que trilho não pisei?
Que segredos não soube desvendar?
Que imensidão de mim não foi suficiente?
Como funciona um grão de felicidade?
Um grão pequeno, uma migalha, um sopro do refexo sonhado e sentido. Existe um nó que se aperta, uma medusa que destila veneno, minando a minha consciência e transvazando uma agonia para um eu vazio. Perceber é um exercício de quê?
Que traço deve ser desenhado, que nota deve ser tocada, que palavra cria o milagre do acontecer? Amarfanho os cantos da vida num envelope velho, onde moram fotografias que não reconheço.
Não quero estilhaços...porque era tão inteiro esse meu querer!




Margarida Piloto Garcia

Web-Art de Yolanda Botelho





terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Extracto de mim



Sou feita de maçãs e hortelã
do ácido dos frutos do pomar.
Papoilas enchem-me o cabelo
e os girassóis inundam-me o olhar.
O cacau mais amargo
corre nas minhas veias
palpitante.
A canela e o jasmim
vivem em mim.
Chocolate e pimenta são a seiva
com que meus lábios
mordem com ternura ou beijam.
As rosas perfumam o meu rosto.
Flores de maracujá
cantam nos meus abrigos.
Sinto os frutos vermelhos
escorrerem-me na pele
e na minha alma flores de lótus
deslizam sem sentido.
Odores de mel e especiarias
deleitam-me a vida,
em paisagens desérticas, de sol
e exuberantes florestas virgens.
E nos verdes pomares,
onde os cantares são lágrimas choradas,
as flores de laranjeira desabrocham
tecendo-me a mortalha
em mãos de fadas.



Margarida Piloto Garcia

Quadro de Felipe Casorati




domingo, 4 de janeiro de 2009

Ilusões






Longa é a noite,
sem as tuas palavras tatuadas na minha alma
e a tua voz
escorrendo quente pela minha pele.
Mete-me medo
esta febre de te ter e de me dar.
Acho guloso o teu sorriso,
nuns lábios que adivinho exigentes
no frémito do desejo.

São minhas as palavras
não estudadas
não pensadas
não alinhavadas
num qualquer contexto.
Totalmente aleatórias
sentidas
vividas
e sofridas.
Mas é de um universo paralelo que se trata.
O meu comboio,
percorre uma linha
que passa tangencialmente pela tua,
sem nunca a encontrar.
As palavras só fizeram sentido
para mim.
Atingiram a tua superfície
como pedrada num lago.
Depois
a água continuou lisa e profunda,
negra e vazia de vida...como antes.

Eu sei.
É este meu defeito
de ser toda alvorada
aurora boreal
chama que se consome,
sem nunca se apagar.
Mas poderei alguma vez,
trocar-me e diluir-me
por uma felicidade incerta?
Certa ou incerta
pouco importa.
Este sobressalto que me corre nas veias
é apenas o meu código de vida,
o traço primitivo
que faz de mim quem sou.

Tudo o que deveria ser epístola de amor
tornou-se gravação em pedra tumular!

São regatas feitas em barcos de papel,
estes encontros
que nos inebriam
mas nos magoam.
Corremos feéricos,
tragados pela voragem
de um ciclone emocional.
Convenço o meu eu
dum qualquer cenário digno de Hollywood.
Assumo identidades paralelas
unidas na mesma descoberta
de efémeras e fugazes alegrias.
No fim
embaraço-me nos fios que me prendem,
marioneta partida
no teatro da vida.


Margarida Piloto Garcia



sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Terra de Sal




Essa terra entrança-lhe o cabelo de salmoura.
Os gritos das gaivotas sulcam-lhe a memória como traineiras em mar revolto.
O cheiro da maresia é um perfume de evocações de Agostos idos.
Odores de creme Nivea, o da caixinha azul,
passados numa pele alerta, a imaginar toques proibitivos e sonhados.

Essa terra é um grito de explosão mar fora.
Passeios longos nessa areia partilhada de fulgores,
até deixar o sol morder a pele.
Solta nela o orgulho de mulher.
Traça-lhe os lábios o apetite de um beijo voraz.
Olhos castanhos rasgados de sonhos futuros!
Passeios largos,
rochas altaneiras,
esconderijos descobertos e partilhados.
Subidas fulgurantes em encostas a parir verde e cheiro a seiva.
Ameias de castelo debruçados em sons estereofónicos,
crias dadas à luz por carro veloz.

Essa terra debita-lhe na alma o sotaque arrastado
das peles curtidas pelo mar.
O som melodioso enrolasse-lhe na boca e transforma-lhe as vogais lisboetas em suspiros de sereia.
Traz-lhe em revoadas o espanto provocado da chegada.
Lembra-lhe os encantamentos induzidos,
quando desce de um autocarro,
quando sobe a ladeira,
quando brinca escondida na trama de um chapéu de palha.
Há fluxos de energia gerados pelos ventres quentes
nascidos da mente repleta e farta...insaciável!

Essa terra é um fruto que se come sôfrega
em pedaços carnudos e sumarentos,
mas também se mordisca e lambe até que o sal e o ácido lhe piquem a língua.
Ás vezes solta-se dela o cheiro do pão acabado de cozer,
morno e suculento numa madrugada.

Tem sons de quarto embebidos em desejo,
amálgama delirante de um romance bordado em desespero.
É uma paixão sonhada em vida, um rebentar pelas costuras.
Tantas ruas e esquinas cheias de pedras polidas
por onde deixou a vida escorrer.

Essa terra é-lhe mais fiel do que ela lhe foi.
Aceita-a de volta quando ela a renegou.
Debruçada sobre ondas em marés de Setembro
ela recolhe-a no seu útero,
ressuscita-a em procissão calcorreada
no cheiro de alecrim e rosmaninho.
Talvez os vultos que lhe rasgam a vida se entretenham
no apelo dessa baía.
Ela só quer lembrar o verniz às camadas,
o cabelo longo a cheirar a sol
os remos fendendo a água
as lapas brilhando no meio de ouriços do mar.

A pequena cama onde a criança dormiu
e a mulher sonhou, o gosto da farinha torrada,
vertida na boca que grita na brincadeira em génese,
são alguns dos alinhavos de que foi feita no tear da vida.

Essa terra tem lágrimas brilhando nas escamas
dos peixes saltitantes trazidos pela rede.
O vestido verde ajeita-lhe o primeiro soutien
escondendo-lhe e mostrando a pele suculenta
como um figo maduro.
Adolescência mergulhada em mar profundo,
pose altaneira de quem sabe o que vale.
Existe em si a semente dessa baía rasgada na serra.

Não importa quanto tudo mudou nela, na terra, na vida.
Essa terra é a sua alma e nesse mar fará a sua sepultura.

Margarida Piloto Garcia-in-POESIA SEM GAVETAS-PARTE II-publicado por PASTELARIA ESTÚDIOS EDITORA-2013