quarta-feira, 10 de junho de 2009

E.T



Soergue a mão e deixa lentamente escorrer areia por entre os dedos.
Contando cada grão, uns mais escuros, outros mais brilhantes, xistosos, ela mede cada segundo de vida e deixa-os cair e desaparecer lentamente, numa chuva miudinha e dispersa.
Com os segundos passando, num tempo que não se detém, conta os grãos, e a memória regressa a uma praia onde as mães cuidam dos filhos, onde os toldos enfunam ao vento.
Há velhos bancos de madeira com pequenos orifícios pelos quais a areia escorre para formar castelos.
Os castelos são de areia tal como os sonhos, mas ela ainda não sabe e sonha.
Os sonhos são de menina mas contêm o germe de todos os sonhos.
E o pensamento é livre e escorre, tão palpável mas tão etéreo como a areia que agora lhe escorrega por entre os dedos.
Devagar, devagarinho, ela descalça-se como no strip mais intimista e mergulha lentamente os dedos dos pés na areia fresca da madrugada, macia como uma virgem por desflorar.
A sensação de que se recorda ano após ano, regressa num impacto súbito.
É sempre a mesma!
Os grãos que escorrem da mão, são o anti-clímax da profunda e sensual sensação de puro deleite, enquanto deixa os pés escorregarem e enterrarem-se profundamente na seda fria do areal.
Um sorriso transcende-lhe as comissuras dos lábios e retira-lhe o ricto um pouco amargo de acumulados desalentos.
E à medida que a pele aprofunda as sensações, ela sente cada poro aspirar o aroma pungente da brisa marinha.
São tantas as emoções que a percorrem, que já não sabe exactamente onde começa e onde acaba a paixão e a volúpia dos grãos de areia fria da alvorada.
Saboreia o momento, numa vibração quase orgásmica que não precisa de parceiro, porque existe dentro de si
.Ela sabe que o momento é breve tal como a realidade, porque o sol vai aquecer a areia fria e os sonhos têm de ser recolhidos muito fundo.
Fundo, tão fundo que às vezes se esquece de sonhar e é nessa altura que o travo metálico de uma morte anunciada a faz vacilar.
O momento aproxima-se e a dor fá-la retrair-se numa estátua.
Tenta desesperadamente agarrar o último resquício da sensação que não quer perder, da emoção que não quer largar, da paixão que não quer deixar arrebatar do corpo, da alma, de todo o seu pensamento.
Agarra com força o último punhado de areia e cerra-o na mão fechada.
Nas costas da pequena mão que lhe recorda a criança de outrora, uma veia azul serpenteia como o caudal de um rio.
Segue o rio, navega nele olhando-o com duplicidade da margem e, pouco a pouco, muito lentamente, à medida que o sol se torna mais intenso, abre lentamente a mão fechada e deixa os últimos grãos de areia cairem, já mortos, pisados e húmidos, junto dos seus pés.
A névoa dissipou-se.
Quando levanta a cabeça das mãos, as paredes do quarto encerram-lhe o corpo e a vida.
Os olhos seguem a luz que entra pela janela.
A média distância erguem-se mais paredes, mais janelas, num cenário de um qualquer planeta que não é o seu.
Recolhe à posição fetal.


Margarida Piloto Garcia


6 comentários:

vitor correia disse...

Majestosa mensagem dum ser que procura com toda a alma algo que lhe foge por entre os dedos.A felicidade .continuo a dizer que é um erro enorme não seres publicada e lida por milhões de pessoas que no mundo se interessam pela escrita.Grato por maravilhares os meus olhos que te lêm

Nilson Barcelli disse...

Este texto é fabuloso.
Já era teu admirador na poesia. Agora também o fico na prosa.

Bom feriado, beijo.

Anónimo disse...

Extremamente belo este texto..parece revelar a autora nos seus mais sensíveis sentires. Como sabes eu prefiro a prosa, talvez por deformação e penso que deves escreveres mais prosa, pois tens o talento para o fazeres. Obgd

Pelos caminhos da vida. disse...

Estou de volta!!!

Obrigada pela sua visita.

Tem flores la pra vc.

beijooo.

Unknown disse...

Belo espaço o seu blog...mas...ca`^e o texto da tertúlia? ai ai ai..

Susana Falhas disse...

Olá Margarida:

Em primeiro lugar, estou a passar por aqui para lhe agradecer o comentário que me deixou, a propósito da blogagem colectiva da Aldeia da Minha vida. São palavras que me dão mais encoragem para fazer mais pelo mundo das blogagens , a favor das nossas aldeias portuguesas.

Em segundo lugar, esperava encontrar aqui uma postagem dedicada ao dia da Tertúlia...caso entretanto publiques, ainda volto cá para espreitar. Eu já escrevi sobre o meu lugar especial.

Um grande abraço, Susana