domingo, 1 de março de 2009

Delírio





 “Nós, as mulheres, o que nos faz amar um homem é aparentá-lo com tudo o que amamos-o tempo da crise, da puberdade, da gestação, do enigma; os primeiros rostos, as primeiras carícias, os primeiros medos.”

Agustina Bessa-Luis




Esqueço o teu número num copo.

Meio cheio

meio vazio

meio cheio.

Tento...tonta, vestir a desnudada incompreensão

e atravesso a fronteira entre o real e o imaginário.

Esqueço a tua voz que me hipnotiza

rabisco frases idiotas, engulo ácidos de desespero

ansiando pela tão desejada anestesia.

Esqueço os teus beijos

suaves, carentes, tímidos

ou devoradores e suculentos.

Embarco num turbilhão

giro num carrossel que me nauseia

numa montanha russa de sombras escuras.


Retorço-me na minha carapaça,

inseto inútil e assustado na palma da tua mão!

Esmagas-me devagar com toda a crueldade,

de quem não entende, de quem me teme.


Esqueço a tua escrita correndo-me no sangue,

fluído vital

parte de mim.

Poesia do meio da manhã

quando a emergência do sol nos desespera

e os zeros da existência nos confrontam.

Esqueço tudo, o antes, o durante e o depois.

Rasgo com olhos vagos o copo...

Meio cheio

meio vazio

meio cheio.

A vida escoa-se em cada gota de álcool, a sangue frio.


O ar à minha volta é um garrote

um animal que vai roendo a presa

e prefiro não confrontar os cubos de gelo

diluindo-se na vaga de calor que tu não sentes.


Esqueço a perceção do inevitável.

Não consigo evitar o rasgar de entranhas

numa ilógica e fascinante destruição,

diluída num conteúdo inútil de tão ferida.

E dói-me o teu perfume à esquerda

do meu braço como uma tempestade de verão.


O copo continua lá

meio cheio

meio vazio

meio cheio.

Deixo de acreditar que o sol nasceu num novo dia.


O inseto que sou ainda estremece,

tentando lutar num instinto básico e primário.

Mas a dor que tu provocas aperta mais o cerco,

fina, fria, metálica.


Já nem reparo no copo.

Meio cheio

meio vazio

meio cheio.

Esqueço-me de viver...



Margarida Piloto Garcia in- Tributo a Agustina e Saramago. Publicado por Temas Originais-2022 




2 comentários:

Maria disse...

Pois... a memória da pele é a mais forte...
beijo

Anónimo disse...

Eu diria da carne e dos sentidos. beijos

vmnc